¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, agosto 28, 2009
 
CHEF CATALÃO DENUNCIA
SEQÜESTRO DA COZINHA
ESPANHOLA PELA
EXTREMA DIREITA



Está surgindo no mundo todo uma nova cozinha, mais química que propriamente culinária, que tem feito a fama de chefs pretensamente criativos. O mais conhecido representante dessa linha de restauração é o catalão Ferran Adrià, cujo restaurante El Bulli, em Barcelona, já não aceita mais reservas para 2009. Apesar de ter três estrelas no Guide Michelin e ser considerado um dos melhores do mundo, é o tipo de restaurante que meus pés jamais visitarão, mesmo que tivesse reserva para a semana que vem.

Adrià tornou-se um expoente da chamada gastronomia molecular, que consegue extrair sucedâneos da boa e velha carne a partir de produtos da terra e construir manjares exóticos como caviar de maracujá. As cozinhas mais parecem laboratórios cheios de retortas e os cozinheiros têm formação em física e química. Segundo entrevista publicada ontem no Estadão, um outro chef catalão, Santi Santamaria, dono de um outro três estrelas, o Can Fabes, a gastronomia espanhola foi seqüestrada pela “extrema direita culinária”.

Confesso que não sabia existir culinária de esquerda e culinária de direita. Poderia até entender que feijão com arroz é culinária de esquerda e bife kobe ou caviar constituem culinária de direita. Mas a vida me ensinou que as coisas não são assim tão simples. Em meus dias de Paris, comi em restaurantes caríssimos... convidado por um médico gaúcho ligado ao Partidão. “Mas Valter, não tenho condições de comer nesse restaurante”. “És meu convidado”, me dizia ele. Se você quer conhecer os mais sofisticados restaurantes do mundo – não estou falando dos melhores – pergunte a um comunista. Eles vivem em eterna busca da melhor cozinha, para alimentar os homens da futura sociedade ideal. Mas a definição de Santi Santamaria não tem muito a ver com ideologias.

“A criatividade transbordante nos fez perder a bússola. Por décadas a cozinha se sustentou pela qualidade dos produtos frescos. Produtos que são o que são e por isso causam sensações gustativas. De repente, viramos "magos" que criam efeitos especiais com pós, sem medir as consequências disso. (...) Há um grande debate na Europa – França, Alemanha e Itália, em especial – sobre essa cozinha que as pessoas chamam de molecular, mas eu chamo de nuclear de tantos aditivos químicos que usa".

Santamaría não concorda com a presença de aditivos na alta gastronomia. Julga-a preocupante, pois aditivos que só fazem mal em grande quantidade. “E sempre vai haver alguém dizendo que se eu comer um presunto inteiro também vai me fazer mal, o que é verdade. Mas o presunto eu vejo, o aditivo, não. E o consumidor tem o direito de saber o que come”.

Aconteceu-me há algumas semanas. Fui convidado por uma boa amiga para um almoço num destes restaurantes modernosos cá de São Paulo, tocado por um discípulo de Ferran Adrià. Não vou nominá-lo, porque demonstrou ser pessoa de uma extrema simpatia. Já a tal de cozinha molecular...

A cada prato, um garçom vinha explicar do que se tratava, já que a um neófito desta nova culinária é impossível saber o que tem à sua frente. O primeiro prato parecia um ikebana. Por gozação, disse ao garçom:

- Está muito bonito, pode levar de volta.
- Mas o senhor não vai comer?
- Bom, é que eu não queria desmontar tal obra de arte.

Era uma tábua retangular preta, com três faixas paralelas brancas. O garçom disse que podia comer sem remorsos, eles remontariam o prato. Tinha uma coquille Saint Jacques cortada em seis minúsculos pedacinhos, creio que com alecrim por cima. Comi a coquille e o garçom me alertou que eu não havia provado o palmito pupunha. Que pupunha? - perguntei. Ora, pupunha eram as três faixas brancas grudadas na tábua. Eu pensava que era parte integrante da tábua.

O segundo prato - o recipiente - teria uns 7 cm por 5. Juro! Dentro vinha uma combinação de limão, melancia, sal e castanha-do-pará, que reproduzia o gosto da ostra. Mas por que não a velha e boa ostra, pô? Se bem me lembro, veio até um caviar de sagu. Esse eu não conhecia. Em meio às gororobas exóticas, havia um teco de arraia, creio que com manga. Se os demais pratos, apesar de irreconhecíveis, agradavam ao palato, a tal de arraia estava abominável. Me lembrou o sancocho, um charque de peixe que comi nas Canárias. Há uma canção tinerfenha que dá uma idéia do prato: “De tanto comer sancocho, se murió Rafael”.

Surgiu depois um aligot, uma espécie de purê de batata com queijo, que os garçons serviam fazendo malabarismos com dois garfos. Este, pelo menos, me era familiar, eu o conheci na França. Para finalizar, uma sobremesa à base de cupuaçu, que certamente foi o melhor do repasto.

Santi Santamaria vê nesta espécie de cozinha uma relação incestuosa entre chefs espanhóis, imprensa e indústria alimentícia. “É só entrar na internet que você vai ver determinados cozinheiros espanhóis se reunindo com o chefe de governo. E há mais: cozinheiros que compram saco de aditivos na Dow Chemical em nome da criatividade. Antes os cozinheiros compravam tomate, alface, peixe, frango. Isso é um insulto à cozinha. E o que é mais grave, alguns chefs comercializam esses aditivos com seu nome”.

Segundo o chef catalão, quem está por trás disto tudo é Ferran Adrià, denunciado em seu livro A Cozinha a Nu, que está sendo lançado nestes dias no Brasil. Santamaria define o que entende por extrema direita culinária: “É uma extrema direita de poder. Eles são o establishment, vendem os pós como progresso, quando os pós são uma adulteração da cozinha como fenômeno cultural. Há uma grande ruptura e nós vamos padecer dela. Assim como houve uma bolha econômica que originou a crise, na Espanha temos a bolha gastronômica: abandonamos o ofício, nos dedicamos ao puro marketing e nossos jovens cozinheiros têm a pior formação da Europa”.

Se é uma cozinha de direita, não sei. Acho que Santi Santamaria quis insultar Adrià com um palavrão ideológico. Mas trata-se sem dúvida de mais uma dessas modas pretensamente sofisticadas e caríssimas. E nisto reside seu sucesso. As pessoas que freqüentam tais restaurantes querem não exatamente comer bem, mas exibir status, potencial econômico. Vão lá para serem vistas. É o que chamo de restaurantes para pessoas jurídicas. Como têm verbas de representação, dedutíveis pelas empresas no imposto de renda, quem paga a conta não são elas. Mas nós, contribuintes.

Saí de lá com uma vontade imensa de uma boa e prosaica cantina italiana. Da velha e boa cozinha, de uma singela picanha mal passada, de um spaghetti aos frutos do mar. Ainda bem que minha amiga pagou. Se tivesse de arcar com minha conta, até hoje estaria me arrancando os cabelos.