¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, setembro 17, 2009
 
COMENTÁRIO DO CATELLI


Grande Janer,

“Para começar eu diria que o normal seria as pessoas gostarem de música erudita.”

Não gosto muito do termo “erudita”, tampouco do “clássica”, que se refere a um período precedido pelo barroco e sucedido pelo romântico. Música clássica é Mozart, Haydn, Glück, Salieri, etc. Música romântica é Beethoven, Brahms, Berlioz, etc.

Eu e um amigo nos referimos a ela como “A Música”, afinal foi, com suas inúmeras variantes, a música por séculos, e incorporava elementos folclóricos, marciais, exóticos. Os estilos atuais são variações de música dançante, com harmonia pobre e sem muita inventividade, notórios pelo autoditatismo, que impede a evolução e torna tudo mais do mesmo, pelo caráter de artesanato e não de arte. Apesar de eu gostar de rock, a harmonia do 1-4-5-1 e quase tudo o que se faz é anjinho de pedra sabão vendido na saída de Ouro Preto. É artesanato.


“Não considero que se precise conhecer música a fundo para gostar de ópera.”

Acho que devemos conhecer o “idioma” para entender o que o compositor pretende dizer. Só captei o idioma de Richard Strauss, seus termos, suas alusões, após ouvi-lo algumas vezes. Incrível como hoje sua Elektra, moderna, sangrenta, me parece mais grega do que qualquer música pueril, que a mim chegasse, da época de Agamenon. Já Verdi, por exemplo, é de um idioma muito conhecido. Se nunca escutamos determinada ópera sua e, pelo libretto, vemos que um confronto é iminente entre rivais, esperaremos um (belíssimo, provavelmente) umpá-umpá marcial com o tenor e o barítono sobressaindo do coro e um gran finale com mudança de Ato.

“Quando me perguntam se uma ópera foi bem executada, minha resposta é: ‘não sei’”

Alguém pergunta, depois de uma Tosca com aquele ceguinho:

- O que você acha da execução do Andrea Bocelli?

- Acho demais... Prisão perpétua já está bom!

“Não conheço música a ponto de saber se os cantores foram sublimes em suas interpretações. Fico apenas no adorei, gostei ou não gostei.”

Faltou o “detestei”, para o caso do Bocelli cantar. Aliás, qual o desafio em cantar sendo cego? Ouve-se gente dizendo: “nossa, ele canta tão bem e é cego...” Beethoven compor surdo é outra coisa....


“Uma mulher gorda ou velha pode cantar muito bem Carmen. Daí a representá-la, em carne e osso, vai uma longa distância.”

Desde que cante bem, não me importa a sua aparência.


“Sou capaz de rever e rever a versão filmada de Francesco Rosi, com Julia Migenes.”

Só não gosto de ver ópera dublada, que é este caso. Às vezes abrem pouco a boca e sai aquele vozeirão... Incomoda-me sobremaneira


“Vou mais longe: Carmen, se não tiver cara de puta, não convence.”

E Micaela deve ser aquele anjo... Aliás, aquela sua ária (Je dis que rien ne m'épouvante) antes de encontrar o José decadente vivendo com contrabandistas é de cortar o coração...


“Música erudita é como literatura. Você começa lendo autores como Machado e passa a detestar toda a literatura.”

Não adianta, nada escrito hoje se compara aos grandes do passado. Acho que porque havia escolas, mestres, dedicação, ócio. Hoje impera o autodidatismo e o maldito improviso. Sem falar que para existir um Mozart deve-se ter mil compositores bons em um universo fervilhante como a Viena do século XVIII. É preciso uma imensa base de pirâmide para existir um ápice.

Estive lendo alguns contos que não conhecia de Maupassant, e relendo outros, como Bola de Sebo (que o Chico plagiou na sua Geni e o Zepelim) e Yvonne, e fiquei abobado... Garcia Márquez, Saramago e qualquer outro Nobel atual passa a ser emético quando lido após os clássicos (usei o termo errado, eu sei).


“A ópera foi um gênero popular entre os séculos XVII e XIX. Era o cinema da época...”

O povão levava comida gordurosa e fazia a maior farofa, cantava junto, interrompia uma ária, vaiava, pedia para repetir quando cantava o tenor famoso (a ária do Arlecchino, no Pagliacci, foi repetida incontáveis vezes na estréia). Fãs de um compositor usavam matraca para atrapalhar a ópera do compositor rival, etc. Hoje há uma certa empáfia entre os que gostam de ópera. Têm-se em alta conta apenas por conhecer ou gostar, quando o mérito há em compor, não em gostar. Se algum desavisado aplaude entre movimentos, logo os "conhecedores" fazem "shhhhhht" e meneiam a cabeça, como se estivessem de fato injuriados com a grosseria... Parvoíce!


“Uma das poucas coisas que gostei em Nova York foi a nonchalance dos freqüentadores do Metropolitan ou da City Opera. Não lembro de ter visto ninguém emperiquitado.”

Estive lá em janeiro deste ano e assisti a uma montagem minimalista do Orpheo Ed Euridice (versão italiana; prefiro a francesa) de Glück e constatei exatamente isso. Ponto a favor dos americanos. Gostei também da legenda opcional sobre a cadeira da frente, em alemão, inglês ou espanhol.


“Ópera é o espetáculo multimídia por excelência...”

Wagner que o diga. Foi o arquiteto do teatro, inventou o fosso da orquestra, inventou a poderosa tuba de Bayreuth, desenhou os cenários, o figurino, escreveu o libretto – excelente, aliás -, e a maravilhosa música, claro.


“O libreto de Don Giovanni é de uma poesia extraordinária.”

Sou fã do Lorenzo da Ponte!


“Uma missa cantada sempre tem um pouco de ópera.”

Principalmente as missas mais recentes, de Beethoven (solemnis), Cherubini (réquiem), Rossini (stabat mater) e de Verdi – o seu mais-do-que-operístico réquiem. E Dvorak (requiem), Fauré (requiem), etc.


“Nós, ateus, não somos hostis à grande arte. Ainda que religiosa.”

Eu escrevi, recentemente: Muitos consideram o Vaticano um bom exemplo de inspiração divina, do quão alto o homem pode ir motivado pela fé no verdadeiro deus. Ora, na Renascença, o mesmo artista que pintava uma madona ou um menino Jesus poderia pintar, enquanto a outra obra secava, uma Afrodite e um menino Hércules lutando contra serpentes. Para ambos temas às vezes eram os próprios papas os clientes, que encomendavam obras sacras para as igrejas e profanas para seus palácios. Tudo que um artista precisa é de técnica, demanda, competição, remuneração e até mesmo de um pouco de inspiração e talento.

Os devotos veem mais santidade em um lugar como a Basílica de São Pedro do que em uma capelinha miserável no interior do Piauí com rachaduras nas paredes e ar cheirando a ricota velha, ainda que para eles o pão transubstanciado em carne no interior do Piauí não deveria ser menos Cristo do que aquele transubstanciado perante o Papa B16. Mas o que a presença física do próprio Cristo pode contra Bernini, Bramante e Michelangelo? Nada! A aura "santa" que se sente no Vaticano sente-se também no Louvre, embora no primeiro caso a fé potencialize a sensação e crie aquela estupefação pretendida por Leão X.

Um abraço!

André Catelli