¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, setembro 19, 2009
 
COPISTAS, TRADUTTORI E TRADITORI


Pois, Quaglio, as diferentes traduções do versículo de Samuel sobre a serra é talvez a demonstração mais contundente de que não se pode confiar em tradução alguma da Bíblia. Houve um grande esforço em amenizar os métodos do sábio rei Davi. De nada te adiantaria ser capaz de ler o texto em hebraico. Pois não existe mais texto original algum da Bíblia. Nem mesmo cópias em primeira mão. Sequer cópias de cópias de cópias. O que hoje temos são cópias de muitas outras cópias anteriores.

O que me remete ao livro citado de Bart Ehrman, O que Jesus disse? O que Jesus não disse? – Quem mudou a Bíblia e por quê, que me foi recomendado pelo leitor Ricardo Donizetti. O autor tem uma trajetória igual à minha. Lendo a Bíblia, perdeu a fé. Só que foi bem mais longe do que eu. Estudou grego e hebraico para conseguir ler o Livro no original. Mais ainda: foi atrás de cada fragmento das cópias que ainda restam da Bíblia, em diferentes bibliotecas, para cotejá-las. Meu caminho foi bem mais singelo.

Inicialmente, li a Bíblia apenas em português. De alguma forma, nela algo há de restar do livro original. O que restou foi suficiente para convencer-me que o tal de deus é uma criação da mente humana. Desde muito jovem, tornei-me ateu. Ehrman, na verdade, não ousou tanto. Tornou-se agnóstico. O que, a meu ver, é ficar em cima do muro. Mas sua reflexão sobre as modificações – involuntárias ou propositais – dos textos originais é fundamental para todo estudioso da Bíblia.

Segundo Ehrman, um estudioso da Bíblia, John Mill, membro do Queens College, Oxford, examinou cerca de cem manuscritos gregos e neles encontrou trinta mil variantes. Outros pesquisadores fazem estimativas bem mais discordantes. “Alguns falam de duzentas mil variantes conhecidas, outros de trezentas mil, alguns falam de quatrocentas mil ou mais! Mas não se tem certeza, porque, apesar dos impressionantes avanços da informática, ainda não houve quem fosse capaz de contar todas. Talvez, como eu já disse, seja melhor falar em termos comparativos. Há mais variações entre os nossos manuscritos que palavras no Novo Testamento”.

Os copistas que reproduziram os textos originais, ao longo dos séculos, foram influenciados por controvérsias políticas, teológicas ou culturais de suas épocas. Sem falar que muito copistas sequer conheciam a língua da qual copiavam. Apenas reproduziam as formas das letras que viam. Um escorregão da pena e o sentido de uma palavra podia mudar muito.

“Com isto se quer dizer que, uma vez que um copista muda um texto – acidental ou intencionalmente -, essas mudanças se tornam permanentes em seu manuscrito (a menos, é claro, que outro copista venha a corrigir o erro). O próximo copista que copia aquele manuscrito copia os erros (pensando serem eles a genuína expressão do texto) e ainda pode acrescentar erros de sua própria lavra. Depois disso, o próximo copista que copia aquele manuscrito copia os erros de todos os seus predecessores e acrescenta erros de sua própria lavra, e assim vai. A única forma de os erros serem corrigidos é quando um copista reconhece que um predecessor cometeu um erro e tenta consertá-lo. Mas não há garantia, porém, de que um copista que tenta corrigir um erro corrija-o corretamente. Isto é, ao mudar o que lhe parece um erro, ele pode, de fato, mudá-lo incorretamente, de modo que se passa a ter três formas de texto: o original, a versão errada e a tentativa incorreta de resolver o erro. Os erros se multiplicam e se repetem; algumas vezes são corrigidos, outras são ampliados. E assim por diante, durante séculos”.

Ou seja: lasciate ogni speranza, voi ch'entrate na leitura dos textos bíblicos. Não existe livro no mundo que tenha sido mais deturpado ao longo dos séculos. Cada época, cada copista, cada tradutor puxa brasa para seu assado. A meu ver, o caminho mais curto para se tornar ateu é ler atentamente a Bíblia. Ehrman, homem de fé, não conseguiu chegar lá. Mas pelo menos colocou sua fé entre parênteses.

Recomendo vivamente, a todo estudioso de assuntos bíblicos, a leitura de seu ensaio. Para aproveitar o azo, recomendo mais um, O Problema com Deus, no qual o autor analisa as respostas que a Bíblia não dá ao sofrimento no mundo.

E boas leituras, leitor!