¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, outubro 20, 2009
 
KFAR SHAUL CHEGOU TARDE


Leio no noticiário on line que a cidade de Jerusalém, considerada santa para os cristãos, judeus e muçulmanos, pode provocar em alguns turistas um efeito alucinante, uma espécie de alteração psíquica devido a sua aura de religiosidade e beleza. Esse efeito é conhecido como Síndrome de Jerusalém. As pessoas que passaram por este surto têm entre 30 e 40 anos, a maioria delas é solteira ou divorciada e, mesmo depois que retornam aos seus países, precisam continuar com o tratamento.

O Hospital Psiquiátrico Público Kfar Shaul estuda essas alucinações há 20 anos e recebe cerca de cinqüenta turistas em cada temporada. Quem sofre o surto acredita ser o próprio messias ou afirma escutar a voz dos profetas. Os mais atingidos são aqueles que têm o hábito de ler constantemente a bíblia. Também acreditam ser o Cristo ou de estarem ouvido a voz de Jesus e por isso, seriam o seu emissário; outros que são a reencarnação de João Batista. Já as mulheres, acreditam estarem grávidas do messias.

Os casos aumentam nas proximidades da Páscoa e Natal. Nas excursões, o guia identifica quem está em surto psicótico e o encaminha para a polícia e posteriormente para o hospital. Os sinais de comportamento são estes: desejo de viajar sozinho a Israel, ansiedade, agitação, nervosismo, necessidade de se manter limpo o tempo inteiro (banhos e troca de roupa são constantes), usar uma espécie de toga branca até os pés, gritar os salmos ou versículos da bíblia e fazer sermões em praças públicas ou em lugares sagrados. É uma espécie de loucura passageira que atinge o turista por cerca de seis dias, provocando um estado de excitação que, em seguida, provoca a buscar incansavelmente de sua purificação e a dos demais. Quando a crise finalmente cessa, ela se recorda de tudo, porém, não deseja falar sobre o que ocorreu.

Comentei isto há dez anos. Jerusalém, desde sempre, atraiu malucos de todos azimutes. Para começar o Cristo, que se ficasse em Nazaré não teria feito história. Em algum momento dos Evangelhos, diz uma voz: “pode surgir algo que preste em Nazaré?” Em verdade, sua cidade natal sequer é mencionada no Antigo Testamento. Paulo também sentiu esta necessidade. Ficasse em Tarso, o cristianismo sequer existiria. Pois quem criou a doutrina, em verdade, não foi Cristo. Mas Saulo de Tarso, que mais tarde adotou o nome de Paulo.

Maomé também sentiu o cheiro de prestígio de Jerusalém. Que tem a ver Maomé com Israel? Ocorre que Maomé viajou, em uma noite, de Meca a Jerusalém, montado em uma besta alada chamada al Buraq, menor que um burro e maior que uma mula. Segundos os mulás, esta espécie de mula teria cabeça de anjo e rabo de pavão.

Até aí nada demais. Se o Deus de Israel arrasa cidades a ferro e fogo, abre mares e provoca dilúvios, por que o Deus dos árabes não poderia delegar uma de suas mulas aladas para levar, em velocidade de Boeing, seu profeta em rápido turismo a Jerusalém? Quem com Jeová fere, com Alá será ferido. O pepino é que Maomé decidiu apear da besta justo ao lado do Domo da Rocha, atrás do Muro das Lamentações. E dela subiu ao Sétimo Céu, sempre montado no Burak e guiado pelo anjo Gabriel.

Melhor escolhesse outra rocha para bolear a perna. Pois aquela, para os judeus, é a Pedra da Fundação, sobre a qual o mundo teria sido criado. Na mesma rocha, Abraão teria oferecido seu filho Isaac em sacrifício a Jeová. Com tanto deserto no Oriente Médio, dois deuses - e dos mais ciosos da própria deidade - inventaram de escolher o mesmo rochedo para suas demonstrações circenses de poder.

Ao ouvir dizer que os deuses gregos haviam morrido, Nietzsche emendou: morreram de tanto rir, ao saber que no Ocidente havia surgido um que se pretendia único. O pior é que a moda do deus único vingou, e os árabes quiseram um outro para si. Não bastasse um segundo deus exclusivo, o primeiro resolveu assumir consistência humana e foi escolher a já conturbada Israel para encarnar. O Filho de Deus nasce em Nazaré e vai morrer logo em Jerusalém, o que faz da cidade uma encruzilhada das três religiões monoteístas dominantes do século.

Decididamente, os gregos conseguiam conviver melhor com seus deuses. Em terra tão eivada de sobrenatural, onde anjos anunciam partos e transportam profetas aos céus, não é de espantar que até os turistas sintam-se de repente transfigurados. O Centro de Saúde Mental Kfar Shaul, a maior clínica psiquiátrica de Jerusalém, desde os anos 80 vem manifestando sua preocupação com o distúrbio conhecido como a Síndrome de Jerusalém. Ao se verem em lugares descritos no Velho Testamento e nos Evangelhos, muitos peregrinos passam a achar que são personagens bíblicos.

Segundo os psiquiatras, a síndrome se manifesta de três maneiras. Algumas pessoas, já mentalmente perturbadas, ao chegar a Jerusalém se convencem de que são personagens bíblicos. Outras têm visões do fim do mundo. Um terceiro tipo de paciente chega são à cidade, mas logo se sente compelido a vestir túnicas brancas e a fazer pregações. Em falta de túnica, vai lençol de hotel mesmo.

A clínica trata de cerca de 150 casos de Síndrome de Jerusalém por ano, dos quais 40 exigem internação. A desordem emocional é mais comum entre protestantes e judeus vindos dos EUA e da Europa. Dos estrangeiros internados, 60% são americanos e 35%, europeus. O restante vem da Ásia e da América Latina. É o que contam as agências de notícias.

Ex-crente, entendo esta síndrome. Que em Israel estes visionários brotem como cogumelos após a chuva, é normal. Se Deus já falou com os homens há mais de dois milênios, por que não o faria com os homens deste século? Ainda mais quando os que o procuram perambulam por sua geografia ancestral.

Quando Cristo anunciou-se como o filho de Deus, muitos outros contemporâneos seus nutriam pretensões semelhantes. Um destes iluminados portava inclusive o mesmo nome do Cristo: era Jesus, filho de Baruch. Mas o filho de Maria teve mais sorte: foi crucificado. Paulo empunhou seu cadáver e erigiu o cristianismo. Pela primeira vez na história, surgia uma religião que ostentava como logotipo um instrumento de tortura. E a cruz invadiu o Ocidente, atravessou mares e hoje polui até a baía da Guanabara. Por esses milagres que só a propaganda consegue, o logotipo sangrento tornou-se símbolo de salvação.

Mas por que isto acontece? Seguindo o Dr. Yair Barel El, responsável pela ala psiquiátrica do Kfar Shaul, em todo ser humano existe um ponto de saturação sensorial ao que ele entende ser a salvação aliada à visão da beleza de uma cidade mística. Existem duas posições distintas sobre esta doença: uma, afirma que ocorre em uma pessoa equilibrada, que nunca apresentou sinal de distúrbio mental, e a segunda, que o surto depende de uma predisposição do indivíduo, manifestada anteriormente no seu país de origem e isto independente do seu nível sociocultural. A ciência, disse ele, ainda não encontrou solução para explicar este fenômeno comportamental.

O Kfar Shaul chegou tarde. A síndrome foi identificada em 1982. Se há dois mil anos os rabinos tivessem clínicas para receber os turistas mais exaltados, estes nossos últimos anos seriam, sem dúvida alguma, menos conturbados.