¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, outubro 18, 2009
 
MEUS AMIGOS MARXISTAS (II)


Outro comunista pelo qual tive grande respeito foi um operário de Dom Pedrito. Chamava-se Gerson Prabaldi e era funileiro. Às seis da tarde, religiosamente, fechava sua oficina, montava em sua bicicleta e saía a fazer seu apostolado. Distribuía as revistas China e Unión Soviética, ambas em espanhol, que traziam belíssimas fotos dos paraísos socialistas, em papel couché e policromia. Mulheres radiantes dirigindo tratores, colhendo trigo, operários felizes empunhando foices ou maçaricos, crianças lindas e saudáveis contemplando os amanhãs que cantam.

Era tudo mentira, é claro. Naqueles dias, tanto China como a ex-URSS passavam por períodos de escassez e mesmo de fome e tinham seus dissidentes assassinados ou prisioneiros em campos. Mas o Gerson, coitado, acreditava naquela propaganda toda. E sentia-se obrigado a divulgar a Idéia – como se dizia então – aos demais pedritenses. Às vezes, organizava palestras em sua oficina. A seu modo, lutava por um mundo melhor. Tenho certeza de que, se soubesse o que realmente acontecia na China ou na então URSS, combateria com o mesmo entusiasmo a tal de Idéia.

Era homem honesto e generoso, mas desinformado. E esta é, a meu ver, uma das raras maneiras – senão a única - de um honesto ser comunista.

Outro comunista que admirei foi Dyonélio Machado, o celebrado autor de Os Ratos. Já septuagenário, gostava de receber jovens em sua casa. Eu o encontrava geralmente às quarta-feiras, quando sempre me esperava com bom vinho. E biscoitos. Pas de vin sans biscuit, costumava dizer.

Militante do Partido Comunista Brasileiro, foi preso em 1935, por ocasião da Intentona Comunista. Passou dois anos na prisão. Em 1947, com o PC na legalidade, se elegeu deputado federal pelo partido e foi seu na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul.

Passou longos anos sem publicar livro algum. De repente, lançou Os Deuses Econômicos, livro cuja história se passava na Grécia antiga. Chegou inclusive a estudar grego, para bem situar sua ficção. A meu ver, foi uma forma de evitar discussões contemporâneas.

Curiosamente, este comunista empedernido foi quem me iniciou nos estudos bíblicos. Eu já havia lido a Bíblia de ponta a ponta, foi quando perdi minha fé. Mas não a conhecia a fundo, Para meu espanto, Dyonélio tinha sempre uma bíblia aberta em um atril, ao pé de sua biblioteca. Lá pelas tantas, me chamava junto ao atril, abria o Livro ao acaso e começava a guiar-me pelas trilhas da Judéia e Palestina. Apanhava então um tomo da História das Origens do Cristianismo, de Renan, e saíamos a viajar por aqueles tempos d’antanho.

Caminhava com entusiasmo pelas ruas de Porto Alegre, apoiado em uma bengala. “Velho que não anda, desanda”, gostava de dizer. Muitas vezes o acompanhei pela Rua da Praia e pela Borges de Medeiros, onde morava. Difícil entender como homem tão culto e generoso era comunista. Que o fosse em sua juventude, era inteligível. Nasceu em 1895 e tinha 22 anos em 1917. Qual jovem, no início do século, não se entusiasmou pela Revolução Comunista?

O problema é que Dyonélio testemunhou as purgas de 1936 e obviamente teve notícias dos gulags, das denúncias de Kravchenko em 1949, e do discurso de Kruschev no XX Congresso do PCUS, em 1956, quando este acusou Stalin de genocídio e denunciou o culto da personalidade que o cercava. Mas fé é fé. Fale a um católico da gema sobre os massacres que Jeová ordenou a seu povo eleito. Ele não vai acreditar. Ou, se acreditar, dirá que Jeová teve boas razões para tanto.

O mesmo ocorria, penso, com o Dyonélio. Jamais consegui questioná-lo, ele fugia ao debate. Segundo me consta, morreu stalinista convicto. Nunca consegui abordar o assunto com ele. “Não vou dar argumentos para os homens” – defendia-se. O que me faz suspeitar que de algo já sabia.

Seja como for, foi um dos comunistas que admirei e do qual tenho as melhores lembranças.