¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, outubro 22, 2009
 
MEUS AMIGOS MARXISTAS (V)


Como dizia, Sábato recidivou. Em Abbadón, El Exterminador, publicado em 1974, sabe-se lá porque, faz a apologia de um dos maiores assassinos da América Latina, aliás seu conterrâneo. O celerado vira um santo. Falo de Ernesto Guevara, o Che, um dos responsáveis pelo maior desastre do continente no século passado, a revolução cubana. Ao elaborar minha tese sobre a obra de Sábato, considerei que na ficção vale tudo, inclusive transfigurar um personagem histórico. Daí resultou um capítulo desastrado de meu ensaio, que reproduzo a seguir.

Hoje, penso diferente. Considero que um escritor não tem o direito de canonizar um assassino frio. Foi mais ou menos o que Jorge Amado fez com Luís Carlos Prestes, em O Cavaleiro da Esperança. E mesmo com Stalin, que endeusou na mais repulsiva de todas suas obras, O Mundo da Paz. Neruda, Aragón e tantos outros fizeram o mesmo. Sábato, que denunciou com veêmencia o stalinista, acabou por construir um altar ao mais operoso stalinista da América Latina.

Pensei inclusive em retirar o capítulo que dedico ao Che em minha tese. Mas considerei que não seria honesto publicar um trabalho que não aquele aprovado na Sorbonne Nouvelle. Escrevi, escrito está. Le voilà:

Um outro Ernesto – Recusando a luta contra Deus, escrevia Camus, o homem se engaja no tempo, na revolução, movimento que mata homens e princípios. Movimento este que terá, na pessoa de um outro Ernesto, também argentino, sua encarnação no continente latino-americano. Como Camus, Sábato não acredita na troca de funções, o escravo substituindo o senhor: "se temos de construir uma nova sociedade não há de ser sobre a base de uma mudança tão-somente econômica, mas de uma nova atitude frente ao homem". Gato escaldado pelo stalinismo, sempre prudente face às Revoluções que logo se tornam "revoluções", Sábato não hesita em saudar em Ernesto Guevara a esperança de uma América Latina independente. A calorosa correspondência entre estes dois Ernestos (anexos 2 e 3) revela uma admiração recíproca. Estamos imersos nos anos 60. (Vista de 1994, a carta do Che padece de um romantismo atroz, e por isso merece registro. Fidel, o Libertador, mostra sua face de tirano. Ante a Cuba atual, dos marielitos e balseros, Guevara revela estar navegando em um mundo onírico).

Vários críticos acusaram Sábato de ter compromissos com a ditadura militar argentina, pelo fato de ter-se recusado ao exílio. Cabe lembrar o discurso proferido na Universidade de Paris, alguns dias após a morte do Che. Sábato vê no guerrilheiro o homem que encontrou a morte combatendo não somente pela elevação do nível de vida dos povos miseráveis, mas também por um ideal mais valioso, pelo ideal de um Homem Novo:

"Assim acabou a vida do comandante Guevara. Indefeso, após sofrer horas intermináveis com muitas balas em seu corpo enfermo, sem médico, com a asma que agravava de modo insuportável sua dor. Houve um latino-americano suficientemente covarde para aproximar-se daquele corpo dorido, com a suficiente coragem para sacar o revólver diante de seus olhos, dirigi-lo ao coração e disparar esse balaço miseravelmente histórico. Jamais saberemos o que disse Ernesto Guevara nesses momentos, mas podemos imaginar que seu olhar foi muito triste. Não por sua esperada morte, mas pelo fato de ter-lhe sido dada de tal forma e por um boliviano. Não por um ranger dos Estados Unidos, mas por alguém que de certa forma era seu próprio irmão".

A data é inerente à obra. O discurso foi proferido em novembro de 1967, em meio ao clima emocional criado pela morte de Guevara. Vista de hoje, quando milhares de pessoas arriscam a vida no mar em balsas improvisadas para fugir da ilha, Cuba talvez fornecesse a Sábato uma visão distinta da obra do Che. Seja como for, a admiração do escritor pelo guerrilheiro está em Abbadón, el Exterminador. Através do relato de Nepomuceno, o "Palito", Marcelo Carranza ouve a saga do Che. O personagem Palito seria um companheiro de armas do guerrilheiro. Sábato mescla história e ficção. Boa parte de seu relato está baseado no diário de campanha de Inti Peredo. Em carta de despedida a Fidel, diz Guevara:

"Outras terras do mundo reclamam o concurso de meus modestos esforços. Posso fazer o que te está negado por tua responsabilidade à frente de Cuba e chegou a hora de separarmo-nos. Deixo aqui o mais puro de minhas esperanças de construtor e o mais querido entre meus seres queridos. Libero Cuba de qualquer responsabilidade, salvo a que emana de seu exemplo. Se a hora definitiva me chegar sob outros céus, meu último pensamento será para ti, Fidel".

Abbadón traz ainda a transcrição de um outro trecho de carta, esta endereçada a seus pais, que evidencia o caráter romântico e quixotesco do empreendimento do guerrilheiro:

"Queridos velhos: sinto outra vez sob meus talões o costilhar do Rocinante, volto à estrada com minha adarga no braço. Há coisa de dez anos, escrevi-lhes outra carta de despedida. Segundo recordo, lamentava-me de não ser melhor soldado e melhor médico. O segundo já não interessa, médico não sou dos piores... Pode ser que esta seja a definitiva. Não a busco, mas está dentro do cálculo lógico. Se é assim, vai um último abraço. Sempre os quis muito, só que não soube expressar meu carinho. Sou extremamente rígido em minhas ações e creio que às vezes não me entenderam. Por outro lado, não era fácil entender-me. Creiam-me, pelo menos hoje".

Che teve sorte. Morreu como herói. Seria interessante imaginar sua reação face ao encarceramento de opositores e à fuga, em 1980, de quase duzentos mil cubanos para os Estados Unidos. De qualquer forma, Sábato toma como personagem uma espécie de mito, a figura do guerrilheiro não coincidindo necessariamente com o homem Guevara.

A evocação de Palito mostra um homem que acredita mais no moral e na disciplina que no poder das armas. Um guerrilheiro deve manter a decisão de combater seus ideais até a morte. Esta disciplina não é a dos quartéis, mas a de "homens que sabem pelo que lutam e que sabem que isso é grande e justo". À noite, segundo o relato de Palito, Che dava um curso de francês:

"Não é uma questão de dar tiros, dizia, só de dar tiros. Algum dia vocês terão de ser dirigentes, se triunfarmos nesta guerrilha. O dirigente, dizia, tem de ter não só coragem, tem que se desenvolver ideologicamente, tem de ser capaz de análises rápidas e de decisões justas, tem de ser capaz de fidelidade e disciplina. Mas, principalmente, dizia, tem de constituir o exemplo de homem que queremos em uma sociedade justa".

Palito confessa não compreender muito bem o que Che queria dizer "homem novo". Deduzia que deveria ser mais ou menos como o Che: "com espírito de sacrifício pelos outros, com coragem e ao mesmo com compaixão e..." O companheiro de armas de Guevara hesita. Mas acaba fazendo uma descrição quase evangélica do Che:

"Dizia que não se podia lutar por um mundo melhor sem isso, sem amor pelo homem e que isso era uma causa sagrada, não uma simples questão de palavras, que a cada dia, a cada hora, tinha-se de prová-lo. Muitas vezes o vimos tratar sem rancor soldados que pouco antes haviam atirado para matar, como curava suas feridas, mesmo gastando os medicamentos que para nós eram escassos".

Um episódio narrado por Palito nos conduz ao Camus de Os Justos. Che havia ordenado uma emboscada e devia comandar o ataque. Mas o primeiro caminhão passa e nele havia dois soldados adormecidos ao lado de porcos. Che não ataca. É preciso ser uma espécie de santo leigo – acusação aliás feita a Camus – para nutrir esta ternura pelo inimigo que não pensaria duas vezes para apertar o gatilho.

"Naquela noite, ao redor do fogo, nos explicou que uma atitude como aquela talvez pudesse ser considerada como uma debilidade e que debilidades daquele tipo em certos momentos poderiam ser fatais para a guerrilha. Mas ali surgiu de novo o homem novo. Matar de tocaia dois soldados indefesos, adormecidos e inocentes, porque afinal de contas combatiam recebendo ordens, seria realmente uma debilidade. Seria possível criar o homem novo pelo qual lutávamos sobre a base de atrocidades como aquela? Seria possível se chegar a fins nobres por meios ignóbeis?"

Nesta romântica defesa da guerrilha, Sábato deixa entrever que seria legítimo matar os dois soldados caso estivessem acordados, mesmo sendo inocentes. Dos diários do Che e Inti Peredo, o autor passa às notícias da imprensa cotidiana. Eis-nos de novo reenviados às páginas policiais. Desta vez não mais se trata de uma crônica policial, mas da realidade política da América Latina.

"Calcula-se que o comandante Ernesto Che Guevara deve cair de um momento a outro, pois está rodeado há vários dias por um círculo de ferro. Aqui, a terra e as picaduras transformam a pele de qualquer ser humano em um manto de miséria. A vegetação inextricável, seca e coberta de espinilhos, torna impossível qualquer deslocamento, mesmo de dia, a não ser pelos arroios estreitamente vigiados. Não é possível entender como os guerrilheiros podem suportar este cerco de sede, fome e horror. 'Este homem não sairá vivo', diz um oficial".

Fim inexorável. Prisioneiro e ferido, Che encoraja, na ficção de Sábato, o soldado que deve executá-lo: "Não me atrevia a disparar. Nesse momento vi o Che muito grande, enorme. Seus olhos brilhavam intensamente. Senti que vinha por cima de mim e senti uma tontura. Esteja tranqüilo – me disse –. Aponte bem".

Sábato tem profundo desprezo pelas esquerdas festivas. Em seu vocabulário, as gauches caviar. Admira quem não hesita em abandonar uma situação confortável para lutar. No mesmo livro, comentando a célebre afirmação de que a literatura é inútil enquanto há uma criança no mundo morrendo de fome, Sábato-personagem explica sua visão do Che:

"Não negou a medicina. Abandonou-a. Deixou que outros fizessem medicina. Além disso, declarou: o dever de um autêntico revolucionário é fazer a revolução. Um sapateiro é sapateiro enquanto faz sapatos, do contrário é um mistificador. Devemos admitir, no entanto, que a revolução não se faz só com fuzis. Faz-se também com livros, começando pelos que escreveram, como Marx ou Bakunin".

As letras ou o fuzil. Nestes dois Ernestos, vemos pessoas que tudo jogaram – seus empregos, uma situação confortável e mesmo suas vidas – em uma aposta pelo homem.