¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, outubro 13, 2009
 
O ASTRÔNOMO DESILUDIDO

Giovanni Papini



Monte Wilson, 11 de Julho


"Subira para este observatório – que possui o mais poderoso telescópio do mundo – para pedir as últimas notícias sobre o universo a um astrónomo, cujos estudos outrora custeei.. Não o prevenira e não o encontrei. Pude falar, no entanto, com o seu assistente, o Dr. Alf Wilkowitz, um rapaz de origem polaca, que me pareceu até inteligente demais para o cargo subalterno que ocupa.

Ontem à noite, por exemplo, enquanto fumávamos e bebíamos num dos terraços do observatório, sob um céu coalhado de estrelas, como raras vezes se vê, Alf Wilkowitz disse-me, de súbito, com voz mudada:

- Mr.Gog, sinto a necessidade de lhe confessar o que não confessei até hoje aos meus mestres. Creio que poderá compreender-me melhor do que eles.

"A astronomia, há anos, parecia-me a mais divina das ciências, e foi o meu primeiro amor intelectual, apaixonado e forte. Hoje, depois de conhecer o céu mais de perto, sinto-me perplexo, perturbado, duvidoso e, de vez em quando, até, amedrontado. A astronomia causou-me uma decepção. Veja se me compreende: a astronomia, como ciência exata, é um dos mais belos edifícios levantados pelo espírito humano nos últimos séculos. Desiludiu-me, pelo contrário, o seu objeto: o universo sideral.

"Descendo de uma família religiosa e desde a infância me ecoou na alma o famoso versículo: os céus narram a glória de Deus. Mas agora, que conheço melhor o céu, que conheço de perto os que o ocupam e seus recantos, parece-me que fui atraiçoado. O firmamento fora por mim fantasiado como uma esfera quase divina por cima do planeta demasiadamente humano. E, pelo contrário...

Alf Wilkowitz atirou com raiva o cigarro apenas começado e ergueu a mão para a abóbada cintilante.

- Aí está o que acontece lá em cima. Inumeráveis, imensos fogos que fogem e se consomem. Porque fogem? E para onde? Nós estamos acostumados às rotações regulares dos nossos mesquinhos planetas em volta da insignificante estrelinha que é o sol. Mas a maioria dos astros foge vertiginosamente – tanto as nebulosas como as estrelas adultas –, não sabemos para onde nem porquê. As nossas medições são risivelmente insuficientes; os nossos telescópios mais poderosos são como os olhos de insetos a fitar os cumes excelsos do Himalaya. O céu que nós vemos não é o de hoje, deste momento: numas partes é o de há milênios, noutras o de há séculos. Parece que as nebulosas mais longínquas se esforçam por se afastar cada vez mais da Via Láctea, mas porque fogem e para onde, nunca o saberemos.

"Fogem como desesperados e perseguidos, os astros, e, ao fugir, flamejam, isto é, destroem-se. Os seus átomos desagregam-se em milhões de cada vez, gerando luz e calor. Mas quem é aclarado por essa luz? Quem se aquece com esse calor? Porventura se dissolvem com tão louca prodigalidade para que as nossas noites sejam iluminadas por alguma pálida cintilação? Seria oca soberba pensá-lo, e o gigantesco dispêndio para tão pequeno efeito seria inconcebível loucura. Os abismos siderais são tão grandes que nem esse exorbitante desperdício de calor pode fazer subir de muito a sua temperatura.

"E, contudo, milhões de nebulosas, bilhões de estrelas não fazem outra coisa, há séculos e séculos senão fugir e destruir-se, sem razão imaginável. O desperdício de luz e de calor que se dá a cada instante nos incomensuráveis golfos do céu ultrapassa qualquer poder de cálculo e de fantasia.

"Será possível que uma inteligência suprema e perfeita quisesse esta dilapidação enorme, perene, e, no entanto, inútil? Para que servem essas inumeráveis e medonhamente grandes fogueiras fugidias, que continuamente nascem e ardem, fadadas a consumir-se em vão, embora em milhões de anos? O espírito humano, a esse pensamento, confunde-se, aterrado pelo espectáculo absurdo. Seria como se homens iluminassem todas as noites, com milhões de lâmpadas e refletores, o deserto do Saara ou os oceanos árticos, que nenhum ser vivo percorre ou habita.

"Mas ainda há mais: há no céu outros mistérios que nenhum intelecto terrestre poderá desvendar. Estávamos habituados a imaginar o céu como a sede e o espelho da eternidade. Outra ilusão, outra decepção. As investigações da moderna astronomia demonstraram que também a cidade das estrelas é feita de úteros e de cadáveres, de jovens e de moribundos. As gigantescas nebulosas em espiral são as matrizes ou as placentas de novas estrelas, de milhões de novas estrelas. Mas estes fogos suicidas não são eternos; crescem, dilatam-se, resplandecem de luz azul e clara no tripódio da mocidade, e depois, a pouco e pouco, empobrecem, tornam-se da cor do ouro, da cor das brasas, e por fim corpos negros e invisíveis, espectros tenebrosos de mortos nos báratros tenebrosos do infinito. O céu é uma incubadora sem fim de novos seres, e ao mesmo tempo, um cemitério interminável de defuntos. A lei do nascimento, do crescimento e da decadência, que julgávamos própria da efémera vida terrestre, é também a lei que reina no alto dos céus. O que foi dito dos homens, parecidos com as folhas, que apontam, frescas na Primavera e caem apodrecida no Outono, vale igualmente para as estrelas. Esses inúteis fogos fugidios são, como os homens, mortais. Há apenas uma diferença: que os homens vivem por milhões de segundos e os astros, por milhões de anos. Mas será, afinal, diante da eternidade, uma diferença verdadeira?

"Compreenderá, agora, a minha confusão e a minha angústia. Lá, onde eu julgava encontrar a perfeição sublime da racionalidade, achei apenas inútil dissipação, louca prodigalidade, movimento e dissolução sem fim nem razão... Lá, onde eu julgava encontrar, por fim, a majestade do imutável e incorruptível, achei a habitual sucessão do dia a dia e do transitório, do nascimento difícil, da juventude esbanjada, da decadência senil, do fim inevitável. Logo que o meu mestre volte, deixarei o observatório e a astronomia. Contentar-me-ei, como os outros homens, em ser um pobre insecto faminto, que vagueia por entre os fios de erva dos prados da terra”.

Assim me falou o jovem Alf Wilkovitz, e havia na sua voz o estremecimento da ira, e havia nos seus olhos um úmido brilho que se parecia com o pranto.