¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, outubro 10, 2009
 
QUAL A PROFISSÃO DECENTE?


Entre 3.000 e 6.000 pessoas se reuniram na quarta-feira passada em Paris para defender o "trabalho decente". O Libé aproveitou a ocasião para perguntar aos manifestantes o que entendem por trabalho decente. Reproduzo algumas respostas.

Para Elisabeth, 49 anos, empregada de France Télécom – empresa em que 24 funcionários se suicidaram desde o ano passado – trabalho decente é um trabalho normal, isto é, sem pressão inaceitável, com horários normais, 35 ou 38 horas conforme a duração legal inerente ao ramo profissional. Eu trabalho à noite e acho isto normal. Para André, 79 anos, aposentado da SNCF (Societé Nationale des Chemins de Fer), é um trabalho permita ganhar sua vida decentemente e sem perdê-la, sem a destruir.

Para Louisa, 18 anos, colegial, é um trabalho que paga um mínimo para bem viver, isto é, antes de tudo o necessário, mas que permite também o desenvolvimento pessoal. Isso supõe não explorar o assalariado, pois atualmente exige-se cada vez mais das pessoas, sem necessariamente remunerá-las mais. É também um trabalho onde não se seja precário e não se corra o risco de ser despedido no dia seguinte. É um trabalho com horários convenientes, isto é, em relação com sua situação pessoal e sobretudo familiar. Não se deve tomar os indivíduos como máquinas - diz Louisa.

Para Marc, 64 anos, professor aposentado, é um trabalho a tempo pleno, que oferece uma remuneração suficiente, que não seja precária. Para Elisabeth, 56 anos, auxiliar de puericultura, trabalho decente deve permitir a pessoa se alimentar e habitar. Para Franck, 48 anos, trabalhador social, deve começar em 1.600 euros limpos. Senão, como ir a Paris?

Catherine, 33 anos, funcionária da Ville de Paris, acha que trabalho decente significa também 1.600 euros limpos. É também um emprego que não seja precário, que ofereça a possibilidade de se formar, de tomar iniciativas e também de se defender em caso de pressões.

E por aí vai. Estão me parecendo pouco ambiciosos os trabalhadores franceses, ou pelo menos os entrevistados pelo Libé. Ora, 1.600 euros é muito pouco em Paris. Para começar, o aluguel de um quarto-e-sala minúsculo, com menos de 40 m2, começa lá pelos mil euros. Studios – as nossas kitinetes – começam por 500 euros. Sobra muito pouco para comer e vestir. Sem falar que lazer faz parte da vida.

André a parte, os entrevistados estão mais preocupados com salário e segurança no trabalho do que com satisfação pessoal, o prazer de exercer uma profissão. De minha parte, sempre pus isto em primeiro lugar. A ganhar bem, sempre optei a trabalhar no que gosto, embora ganhasse pouco. Quanto a trabalhar no que se gosta, isto depende de pessoa para pessoa. Há muitos anos tive uma conversa que até hoje não esqueci, com uma balconista do terminal de Guarulhos, na praça da República. A moça servia cafezinho, trabalho que não é exatamente confortável. Estava radiante, feliz com sua vida. Perguntei a razão de tanta alegria.

- Eu trabalhava na roça, no cabo da enxada. Aqui, atrás do balcão, é luxo.

Ou seja, tudo depende do nível de ambições. Conheço não pouca gente que tem um prazer especial em acumular dinheiro, sem usufruir dos prazeres que o dinheiro proporciona. Pessoa que me impressiona é a Dona Maria, quitandeira de uma esquina cá do meu bairro. Trabalha das oito da manhã às dez da noite, com suas duas filhas, sem gozar domingo nem feriado. Converso muito com seu genro, taxista. Ele está bem de vida, vive em São Paulo e tem um sobrado com piscina em Poços de Caldas. Contou-me que a sogra tem uma fazenda no nordeste, apartamento em São Paulo e conta gorda em banco. Perguntei se ela não tirava férias de vez em quando, se não lhe agradava viajar. “De jeito nenhum. Eu a convidei para três dias em minha casa em Caldas. No segundo dia, não agüentou. Voltou para trabalhar”.

Ela se sente feliz trabalhando doze horas por dia, sete dias por semana, 365 por ano. Sua quitanda não fecha um único dia no ano. Que se vai fazer? Pessoalmente, acho absurda – para não dizer doentia – essa mania de acumular dinheiro sem gozá-lo. Conheço fazendeiros de meus pagos, lá na Fronteira gaúcha, proprietários de uma ou mais fazendas, com um bom milhar de cabeças de gado, que jamais foram sequer a Montevidéu. E não são pessoas avaras.

Tive especial afeto por um deles, o Dr. Davi. Doutor porque o chamavam de Doutor. Quando ganhava algum dinheiro, saía a distribuí-lo a conhecidos na rua. Certa vez, nos encontramos no Chalé da Praça XV, em Porto Alegre. Lá pelas tantas, me enfiou discretamente um gordo pacote de grana no bolso. Que é isso, Davi? Não estou precisando.

- É que fiz bons negócios hoje. Se não precisas, repassa para tuas mulheres.

Bom, já que era verba carimbada, com função social, aceitei. Repassei-a ao bom destino. Em função de minhas viagens, Dr. Davi achava que eu era rico, logo eu que vivia mais de susto que de salário. Ele sonhava com a Europa. Sugeri um dia: Davi, vende uns 30 ou 40 bois, isso não faz nem faz nem mossa em teu rebanho. Vamos à Europa e me disponho a ser teu guia por aquelas cidades lindas. Nada feito. O homem morreu e o mais longe que chegou, além de Dom Pedrito, pelo que me consta, foi Porto Alegre.

Voltando ao trabalho decente: eu não suportaria uma profissão da qual não gostasse, mesmo que ganhasse milhões. Daí minha opção pelo jornalismo. Ganhava pouco, mas consegui o privilégio de escrever de qualquer lugar onde estivesse no mundo. Fiz curso de Direito, com o que se pode ganhar muito. Mas torna o advogado um prisioneiro de seu escritório. Certa vez, convidei uma amiga advogada para viajar pelas ilhas gregas. Ela topou. Viajamos por um mês, eu, ela e minha Baixinha, por aquele azul de fazer chorar do Egeu. Quando ela voltou, seu sócio havia roubado todos seus clientes. Teve de recomeçar de zero.

Profissão decente, a meu ver, é aquela na qual nos sentimos bem trabalhando. Para a Dona Maria é sua quitanda. Para o Davi, era sua estância. Para mim, foi jornalismo. Não que tudo tenha sido flores nos jornais que trabalhei. Mas a necessidade de ordenar em poucos minutos o caos das informações que recebemos, as notícias chegando em várias línguas, a corrida contra o relógio, a adrenalina do fechamento, foram desafios que sempre me agradaram.

Continuo amanhã.