¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, outubro 26, 2009
 
SOBRE A CULTURA PLATINA


De Luiz Melendez, de Rio Grande, RS, recebo:

Caro Cristaldo,

concordo em tudo que você falou nos posts sobre Martin Fierro. De fato é uma vergonha a classe culta aqui do Rio Grande ter virado as costas ao Prata. E não só no que diz respeito à literatura, mas também à música. Para se conseguir algum cd de qualquer milongueiro argentino ou uruguaio é necessário importar via EUA ou Europa!

Quanto mais no que se refere aos livros. Espera-se até sete meses para receber um livro editado ali na Argentina ou no Uruguai. Vivemos aqui numa ditadura regida pela dupla RBS-Globo, a qual só prioriza uma subcultura, tanto a local quanto a do eixo São Paulo-Rio-Salvador, como você bem sabe. O pior de tudo é que os "gaúchos" (gaúchos de mídia) ainda se orgulham da indigência em que estamos. Não sei qual a sua opinião sobre os autores "gaúchos" mais conhecidos. Para mim o padrão criado pelo Erico Verissimo, o paradigma sobre o qual ninguém pode discordar sob pena de ser massacrado, apenas empobreceu a literatura rio-grandense. Eu nunca encontrei grande coisa nas obras dele. Posso estar enganado, mas nada nele me parece original; apenas uma seleção de lugares comuns, de chavões e personagens previsíveis. Espero que a coisa mude, mas me parece difícil.

Um abraço



Meu caro Melendez:

Houve uma conspiração muito bem definida, desde o início do século passado, para separar a dita cultura brasileira da cultura platina. O Erico nunca soube o que era o gaúcho. Homem urbano, farmacêutico de profissão, ele enviava cartas a Antero Marques e Aureliano Figueiredo Pinto, interrogando sobre as coisas de campo. O grande poema gaúcho, Antônio Chimango, foi proibido pelos áulicos de Borges de Medeiros. O grande romance, Memórias do Coronel Falcão, fora recomendado às traças: durante três décadas e meia, esta obra de Aureliano Figueiredo Pinto permaneceu inédita, pois os donos da cultura gaúcha, arrinconados em Porto Alegre, o consideravam eivado de espanholismos. Escrito em 1937, só foi publicado em 1973.

Mesmo que os gaúchos pretendam ignorar a cultura uruguaia ou argentina, há algo de hernandiano até mesmo nos gaúchos estereotipados do Erico. Não poderia ser diferente, já que gaúchos do Brasil e Argentina estão mais próximos entre si, tanto pelo meio geográfico como pela cultura, do que um rio-grandense e um nordestino, por exemplo.

Que é o Antonio Chimango senão uma onda distante, mas concêntrica, provocada pelo Martín Fierro? Também nas canções de Teixeirinha como na poesia produzida pelos poetas ligados ao movimento tradicionalista, lá está a caricatura contemporânea do gaúcho de Hernández. Até mesmo em manifestações literárias mais populares, encontramos o dedo do poeta argentino. Circula subterraneamente no Rio Grande do Sul um conhecido poema pornográfico, “Comendo éguas e outros bichos”. Vejamos uma de suas coplas:

Ò poetas que cantais
velhas cópulas eqüinas
olvidando outras vaginas
que numa escala crescente
vos deram gozos candentes
no lupanar das campinas

Temos a reprodução rítmica exata de uma sextilha do Martín Fierro, com os versos rimando no esquema ABBCCB. Sabemos que esta pérola da fescenina gaúcha foi criada coletivamente por poetas tradicionalistas, que não gostam muito de citar Hernández. Mas a influência é inegável:

Aqui me pongo a cantar
al compás de la vigüela,
que el hombre que lo desvela
una pena estrordinaria,
como la ave solitaria
con el cantar se consuela.

A propósito, este poema argentino - mas também nosso -, que tanto mexe com a alma do homem da fronteira rio-grandense, começou a ser escrito por José Hernández em Santana do Livramento. Não por acaso, o poema maior que a América Latina legou à literatura universal é praticamente desconhecido nos cursos de Letras do país. Mas já fiz palestra em uma “Semana Martín Fierro” ... em Berlim. Onde Hernández foi comparado a Homero. E já o ouvi declamado nas ilhas Canárias, geografia que nada tem a ver com a pampa onde perambulava Fierro. Em Paris, um dos professores que participou de minha defesa de tese, Paul Verdevoye, o traduziu ao francês.

A propósito, há alguns anos, ministrei um curso sobre o poema de Hernández, em Passo Fundo, durante a VII Jornada Nacional de Literatura. Nesta cidade, famosa por suas tradições gaúchas, meus alunos praticamente desconheciam Fierro. Está na hora, parece-me, de a universidade gaúcha esquecer um pouco as confusas teorias literárias geradas às margens do Sena e olhar com mais carinho para a riqueza cultural do Plata.