¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, outubro 07, 2009
 
VOU, VAIO E VOLTO


Vivo longe do mundo do consumo. Compro duas ou três camisas por ano, talvez um par de calças e um par de sapatos. O homem feliz não tinha camisa, dizem as gentes. Não chego a tanto. Mas considero que não precisamos mais de cinco ou dez camisas e talvez dois ou três pares de calças. Mais duas ou três jaquetas para enfrentar a intempérie. Mas insisto no número de bolsos. Certa vez, em Paris, me enamorei por um parka que tinha nove bolsos. Un homme sans poches c’est pas un homme – me disse o vendedor. Um homem sem bolsos não é um homem.

Concordo plenamente. Nos invernos europeus, meu parka é meu escritório. Nele cabe tudo: agenda, livros, jornais, postais, máquina fotográfica, souvenirs. Isso sem falar naqueles dias d’antanho, quando o computador ainda não havia exterminado as cartas. Eu adorava escrever em bares. Nisto reside uma das raras – senão a única – restrição que tenho a Viena. Naqueles cafés esplêndidos, somos despidos na chapelaria. Ao sentar, fico longe de meu escritório. Como os cafés oferecem ao cliente dezenas – e mesmo centenas – de jornais, não sinto muita falta de meu bureau.

Meu maior consumo é de livros e óperas. Entendo por consumo, em seu conceito pejorativo, o que é supérfluo. Comer e beber, para mim não são supérfluos. Cultura também não. Mas também não compro livros em excesso. Houve época em que comprei livros por gula. Se gostava de um escritor, queria ter suas obras completas. Perdi essa mania quando comecei a ler Camilo José Cela. Na Casa del Libro, em Madri, pedi todas as obras do autor. O livreiro me apontou para uma estante. Tinha mais de cem títulos. Naquele dia, abandonei o vício. Hoje, compro apenas os que sei que vou realmente ler. Mesmo assim, nem sempre consigo ler os de viagens passadas. Mas é muito bom tê-los ao alcance de minha curiosidade para qualquer consulta.

Isto não quer dizer que seja imune a tentações. Há horas namoro um Mac, monitor de 24 polegadas. Não tanto pelo monitor, mas porque não tem CPU e aquela maçaroca de fios que uma CPU implica. Cada vez que tenho de conectá-los – o que geralmente acontece quando minha Cristina decide varrer atrás do computador – sou acometido por uma sudorese. É psicológico, sei. Mas não consigo evitá-la.

Mas afinal, pensei com meu teclado, tenho computador com bom HD, bastante memória, boa tela. Seria um luxo bobo optar pelo Mac. Sem falar que meu assessor em assuntos informáticos me alertou: se compras uma máquina dessas, podes te despedir de mim. Melhor então a velha CPU, que dá pra incrementar sem maiores problemas.

Dito isto, mês que vem estou partindo. Com a Primeira-Namorada. Para Madri, Barcelona e adjacências. Em Madri, sempre dou um pulo a Toledo. Evito o ônibus, que vai até o Zocodover, a praça no centro da cidade. Tomo o trem, que pára aquém do Tajo – que é como se chama o Tejo lá perto de onde nasce. É meu teste de juventude. A antiga capital da Espanha fica no alto de um penhasco. Enquanto conseguir subir até o Zocodover a pé, é sinal de que continuo jovem. Por enquanto, apesar de minhas décadas, estou subindo.

Em Toledo, começo pelo Aurélio, um dos restaurantes que mais adoro na Espanha. São três casas. Prefiro sempre a mais antiga, ornada com arreios de galpão, que evocam meus dias de infância no Ponche Verde. O cardápio é generoso, mas há três opções das quais não consigo escapar: o cochinillo, o cordero lechal y las perdices a toledana. A escolha é uma tortura. Como nunca viajo só, peço um prato para mim e sugiro à minha parceira um outro. E fazemos um intercâmbio cultural.

Foi no Aurélio, ano passado, que encontrei uma romena adorável. Havia abandonado seu país e refazia sua vida como garçonete na Espanha. Conversamos sobre Bucareste e Mangalia, Mar Negro e Ana Aslan. Com um ano de Toledo, ela falava um espanhol impecável, de Castilla, la Vieja. Ao final do almoço, como ela não estava na sala, pedi a um garçom: “traeme la rumana”. E abracei e beijei, comovido, aquela menina linda que escapara do inferno socialista para viver vida nova “en el país más lindo del mundo”, como escreveu Cela. Espero, daqui a quatro semanas, beijá-la mais uma vez.

Mais os Riojas. Após o almoço, vou visitar a catedral de Toledo. Sempre chego lá um tanto embalado pelo sangue das vinhas riojanas, o que confere ao templo um encanto especial. Certa vez, estava com a Baixinha, ela começou a chorar. Uma senhora, muito gentil, perguntou se não estava se sentindo mal. “Nada disso” – comentou a Baixinha -. “É a beleza que me comove”. A mim, também. Ateu, aquela catedral me toca fundo. O belo sempre me perturba.

À Primeira-Namorada, quero apresentar Barcelona, que ela ainda não conhece. Eu a conheço – a cidade – há mais de trinta anos e é com autoridade que posso afirmar: está cada vez mais linda. Será mais um teste para minha juventude. Gosto de ir a pé, pela montanha, até El Pueblo Español – hoje Poble Espanyol – que fica a cinco quilômetros do teleférico de Montjuich. É um vilarejo que foi construído para a Exposição Internacional de Barcelona de 1929, reproduzindo as arquiteturas de todas as regiões do país. Não há carro nenhum em suas ruas. Cinco quilômetros de ida, mais a volta. O passeio é magnífico, sem falar que no topo do Montjuich há um restaurante sobre o penhasco, onde adoro ficar horas bebericando uma cerveja, lendo meus jornais e contemplando Barcelona e seu porto, lá embaixo, sob um cálido sol hibernal.

Depois, Tenerife e Lanzarote. Quero rever el Teide maravilloso, o vulcão que se ergue como um furúnculo sobre a cabeça dos tinerfenhos. E mais os trezentos vulcões de Lanzarote, uma das mais belas ilhas do planetinha. Como dizia Don Giovanni em seu banquete:

Già la mensa è preparata.
Voi suonate, amici cari!
Giacché spendo i miei danari,
Io mi voglio divertir.


Io voglio e io posso. Vou, Vaio e volto. Vou e volto, vá lá! Mas que tem a ver o Vaio com vou e volto? É que eu procurava um notebook – ou netbook – para viagem. Para evitar cybercafés e os teclados AZERTY. Nada contra. Mas quem escreveu a vida toda num teclado QWERTY, na hora de trocar pelo AZERTY sofre um bocado. Escrever um mail ou uma crônica é uma tortura. Se tento escrever, por exemplo, quero salmão com azeite, sai: “auero sqlmqo com qweite”. Quando você consegue automatizar o AZERTY, a viqgem jq estq auqse qcqbqndo.

O QWERTY eu até que entendo. Consta que foi concebido para tornar a digitação mais lenta. Na época das máquinas datilográficas – se é que alguém ainda lembra delas – a digitação muito rápida embaralhava as hastes das teclas. Até aí, tudo muito racional. O que não dá pra entender são as intenções do canalha que concebeu o AZERTY. Cá entre nós, acho que devia ser comunista. Para um comunista, não há porque escolher o caminho mais fácil quando se pode optar pelo mais difícil.

Bom, eu paquerava netbooks, que até nem eram caros. Optei, inicialmente, por um que pesava 1,70 kg. Foi aí quando, no stand ao lado, vi o Vaio. Pequeno, 24 cm por 11 quando dobrado, 620 gramas. Skype, webcam, wirelles, duas portas USB, mais duas entradas para chips de máquinas fotográficas. Oitenta gigabytes, bem mais do que preciso para minhas necessidades de comunicação. Cabe no bolso de meu parka. E tem ainda outros babados que ainda nem pesquisei.

Não resisti, leitor. Não considero que tenha me tornado um consumista. Mas não é inteligente privar-se dos confortos que a informática oferece. Novembro que vem, vou de Vaio. Mas provavelmente não baterei ponto todos os dias neste blog. Turismo é trabalho e muitas vezes trabalho duro. Há cidades a visitar, vielas a explorar, montanhas a subir, restaurantes e cafés a curtir. Isso sem falar nos vinhos a degustar.

Conto com a compreensão de meus fiéis. Quando a árdua labuta me permitir, escreverei alguma crônica.