¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, dezembro 12, 2009
 
ABAIXO A HISTÓRIA E A GEOGRAFIA!


Fiz muitas escolhas erradas na vida. Nasci no campo, só fui conhecer cidade aos dez anos, nunca tive mestre que me orientasse. Tive de ser meu próprio mestre e assim sendo cometi não poucos equívocos. Um deles, diria, foi ter feito Filosofia. Filosofia, desculpem-me os filósofos, não passa de palpites. Um pensador diz: o mundo é assim e vai pra lá. Surge um outro e diz: o mundo é assado e vai pra cá. As filosofias, fundamentadas na razão, se derrubam umas às outras e nenhuma é perene. Já a literatura, que com a razão pouco ou nada tem a ver, consegue mais perenidade.

Se leio hoje a República ou o Fédon, de Platão, tenho de dar grandes descontos ao saber da época. Mas A Arte de Amar, de Ovídio, escrito no início da era cristã, conserva hoje todo o frescor dos dias em que foi concebido. “Retira o grão de areia do seio da bela, mesmo que não haja grão algum no seio dela”. Isto é eterno.

Mesmo assim, cometi um outro equívoco, o de ensinar literatura. Literatura não se ensina. Literatura se lê e estamos conversados. Ocorre que, um belo dia, querendo desfrutar de Paris, postulei uma bolsa na França. Pedi a bolsa na área de Letras, área que conhecia bem. E a ganhei. Sem jamais ter pretendido o magistério, acabei fazendo um doutorado em Letras Francesas e Comparadas. Minha pretensão não era ser professor. Mas apenas curtir os vinhos e queijos, a cultura e as mulheres que Paris me oferecia. E assim foi. Voltei com um título na mão (mas não o diploma, já explico) e acabei lecionando literatura por quatro anos na UFSC, Santa Catarina, o que foi certamente o período mais vazio de minha vida.

Ah, estudei também Direito. Ontem ainda, uma colega de curso me lembrava que hoje comemoram-se quarenta anos de nossa formatura. Horror! Como passam rápido as décadas. Foi outra errância minha. Não direi que Direito seja um curso inútil. Mas não me servia. Pra começar, não suporto usar gravata. Continuando, mais do que usar gravata, detesto chamar alguém de Meritíssimo. Meus diplomas hoje mofam em algum canudo perdido em meus arquivos. Exceto o de Dr. em Letras. Havia tanta burocracia para apanhar o diploma, que acabei por deixá-lo lá por Paris mesmo.

Enfim, o magistério em literatura não foi tão inútil. Naqueles dias, ganhava bem e tive o lazer suficiente para escrever um romance, Ponche Verde, onde escrevi, na voz de um personagem:

"Quarenta anos, pois. Sem filho, sem livro, sem árvore. Bons propósitos os alimentara por quatro décadas, mas de bons propósitos Paris transbordava há séculos e era aquele bordel. Como um bordel também estava sua cabeça quando chegou au bord’elle, la Seine, que agora estaria correndo com tanta mansidão mas sempre debitando toneladas de sangue em seu curso. Agora, vendo seu passado do alto da torre Eiffel, conseguira unificar algumas linhas. No direito buscara a justiça. Não a encontrando lá, fora perguntar à Filosofia. Os pensadores haviam permanecido silentes e tivera de estudar História para entender a Filosofia. Descobria agora que sem a Geografia jamais entenderia a História et le voilà, o erudito, careca e enregelado em meio à avara primavera berlinense, com ar mais abestalhado que aquele orangotango".

Meu personagem – uma hipóstase de mim mesmo – descobrira um pouco tarde que sem conhecer geografia ou história ninguém entende o mundo em que vive. Mas, que sabemos da vida quando temos quinze ou dezesseis anos? Hoje, não leio mais ficções – posso até reler as que mais me tocaram – e só tenho lido ensaios históricos, particularmente sobre religiões.

Assim sendo, é com perplexidade que leio na edição do Le Monde de hoje que, naquela França onde descobri que sem história ou geografia não conseguimos entender o mundo, foi suprimido no secundário o ensino de história e geografia. Diz Luc Chatel, ministro francês da Educação: “Os alunos não farão história em cursos terminais, mas atualmente eles também não fazem francês e não tenho a impressão de que eles sejam iletrados”. É um ministro da Educação que afirma que tanto o estudo da língua vernácula como o de história ou geografia são perfeitamente dispensáveis. Se Lula dissesse isto, seria coerente. Mas ouvir isto da boca de um ministro francês é no mínimo chocante.

Chocante, mas nem tanto incoerente. Estudar história significa tomar conhecimento dos horrores que uma igreja, ainda hoje influente, cometeu na França e na Europa. Dos horrores cometidos pelos revolucionários de 79. Das barbaridades perpetradas por Napoleão, um dos vultos mais cultuados na história da França. Dos crimes do comunismo, dos quais foram cúmplices boa parte dos intelectuais franceses, a começar pelo stalinista Sartre. Dizia Norodom Sihanouk, príncipe do Camboja: “os jovens cambojanos, se tivesse de mandá-los estudar no Exterior, mandaria para Moscou. De Paris, eles voltam comunistas.”

Ainda no Le Monde, alguém que se assina como Mika, “simple citoyen”, se pergunta: “Em uma época onde se vê a falta de curiosidade da mais jovem fatia da população, a necessidade de uma identidade nacional, porque atacar esta matéria? A história-geografia é a meu ver uma das matérias-chave da educação. Para começar porque ela é necessária socialmente. Conhecer seu passado, descobrir a formação das civilizações, a criação dos diversos sistemas políticos, é também conhecer a si mesmo, é descobrir como o mundo no qual se vive chegou a ser como é. Que é o comunismo? Que é a república? Que é o conflito israelo-palestino? Aliás, o que é Israel? De onde vem a democracia. E, finalmente, a democracia é o quê?”.

Perguntas incômodas. Ao que tudo indica, ao ministro francês da Educação, estas perguntas não têm importância alguma. É espantoso constatar que, na França de Renan e Voltaire, de Montaigne e Balzac, uma autoridade tome uma atitude que nem os países dominados pelo stalinismo ousaram tomar.

E se na França hoje não mais se estuda história ou geografia, podemos confiar que mais dia menos dia a moda chega até nós.