¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, dezembro 07, 2009
 
PALHAÇO DE CTG
TRADUZ FIERRO



Na ilha de Santa Catarina corre uma antiga piada, que já devo ter contado. Qual é o menor circo do mundo? São as bombachas. Só cabe um palhaço dentro. Verdade que os ilhéus não gostam muito dos habitantes do Estado vizinho. Mas não deixam de ter razão. Porque afinal não têm idéia do que seja um gaúcho. Conhecem apenas os palhaços de CTG, que gozam de prebendas no Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore. Gigolôs da gauchidade, criaram do gaúcho uma visão romântica e totalmente falsa. Que rende muito dinheiro e prestígio. Prestígio pelo menos entre gente inculta. Como esta gente é sempre maioria, o prestígio rende até mesmo poder.

De um pobre diabo marginalizado pela sociedade de sua época, fizeram uma espécie de herói, o tal de centauro dos pampas. O gaúcho, para os cetegistas, é um homem todo virtudes. Uma moça já perdeu o título de prenda destes circos por ter engravidado sem casar. Homossexualismo, ni pensar. Covardia, muito menos. O gaúcho, ou é valente ou não é gaúcho. Foge à condição de ser humano. É uma espécie de deus sem jaça, muito mais perfeito que o bíblico Jeová, que afinal era um assassino de mão cheia.

Terá sido esta cultura de “machos” que relegou ao oblívio um dos mais profundos ensaios jamais escrito no Rio Grande do Sul sobre as origens do gaúcho. Falo de Gaúchos e Beduínos, de Manoelito de Ornellas, que vê as raízes deste personagem não nos portugueses que desciam de São Paulo, como pretendem certos intelectuais da universidade, mas no mundo árabe. Ornellas era homossexual. Anátema seja.

Esta idealização do gaúcho tem suas origens em O Gaúcho, ridículo romance de José de Alencar, escritor nordestino do século XIX, que jamais deve ter visto um gaúcho de perto. Não contente em mistificar este personagem que é mais uruguaio e argentino do que brasileiro, Alencar também falseou a imagem dos bugres, em Iracema e Ubirajara. Mesmo assim, é até hoje considerado um dos grandes vultos da literatura nacional. E depois há quem me pergunte porque não morro de amores pela literatura feita neste país.

Um leitor de Uruguaiana me envia artigo de um destes palhaços, publicado há alguns meses na Zero Hora, de Porto Alegre, louvando sua própria tradução de Martín Fierro. Ora, os cetegistas sempre ignoraram solenemente o Martín Fierro. Imitavam as sextilhas de Hernández, faziam uns poemetos que eram um triste arremedo do grande poema latino-americano, mas jamais citavam o poeta argentino.

Sempre houve, entre os donos da cultura no Rio Grande do Sul, uma ojeriza a qualquer coisa que cheirasse ao Plata. Por estas razões, não foi publicado em vida de seu autor o mais autêntico – e certamente o único - romance gaúcho, Memórias do Coronel Falcão, de Aureliano Figueiredo Pinto. “Tem espanholismos”, alegaram os donos da cultura. Como se o gaúcho não fosse produto, antes de mais nada, de uma cultura hispânica. O gaúcho do Rio Grande do Sul é apenas uma extensão – e muito pequena – do gaúcho platino.

Esta cultura cetegista inclusive se apropriou da palavra como gentílico de todo aquele que nasce no Rio Grande do Sul. Como se gaúchos fossem pessoas que nasceram no asfalto e que jamais viram vacas ou cavalos de perto. Que sem jamais ter montado em um cavalo, se locomovem com carros ou motos. Como se gaúchos fossem pessoas que nasceram dançando valsas e comendo chucrute. Ou dançando tarantelas e comendo pizzas.

Falava do palhaço que pretendeu traduzir Fierro. Não vou citar seu nome, não quero poluir meu blog. Mas terei de citar algumas bobagens que escreve.

“Não há gaúcho no Rio Grande do Sul que desconheça Martín Fierro, a saga de José Hernández” – começa o palhaço. Ora, se por gaúcho hoje se entende quem nasce no Rio Grande do Sul – tanto que o turquinho Pedro Simon é chamado pela imprensa de senador gaúcho – podemos afirmar serenamente que a maior parte desta população sedizente gaúcha jamais ouviu falar de Fierro. Já ministrei um curso sobre Fierro na Universidade de Passo Fundo, cidade que se gaba de sua gauchidade, e meus alunos jamais haviam ouvido falar do poema. E há muito professor nas universidades gaúchas que até pode ter ouvido falar de Hernández, mas não consegue continuar o “Aqui me pongo a cantar”. O palhaço cetegista, já na primeira fase de seu artigo, profere uma tremenda bobagem.

Escreve ainda o clown: "Aliás, o nosso Estado está de certa forma intimamente ligado ao poema. Para começar, o poeta iniciou a escrevê-lo quando estava exilado no Brasil, mais precisamente em Santana do Livramento. O próprio sobrenome do herói é abrasileirado – “Fierro” está mais próximo de “ferro” do que de “hierro”... De resto, a escritora argentina Olga Latour de Botas provou em livro que existiu de fato no Uruguai um bandoleiro que teria sido a inspiração de Hernández: chamava-se Martín Fiero... e andava com capangas brasileiros, muito “conectado” com o Rio Grande do Sul..."

Para começar, se o poema está ligado ao Rio Grande do Sul, isto é mero acidente. Perseguido pelas tropas legalistas na Argentina, Hernández buscou asilo do outro lado da Fronteira. Não há mérito algum nosso na criação do poema argentino. E Fierro não é palavra abrasileirada coisa nenhuma. No Diccionario de la Lengua Española, da Real Academia Española, fierro consta como uma variante de hierro: (del lat. Ferrum) Hierro, úsase hoy en América y en algunas partes de España. O “tradutor” que pretende traduzir o poema começa por não saber a origem do sobrenome do personagem. Continua o bruto:

"Martín Fierro não era o herói “sans peur et sans réproche” de um Rolando ou de um Olivério. Ele passa o tempo todo cheio de autocomiseração, acusando todo mundo, embriagando-se e matando e, quando perseguido pela Justiça, sempre põe as culpas na autoridade. Não compreendeu o índio, nem mesmo tendo vivido com eles quando foi rejeitado pelos brancos seus iguais.

"E com certeza tampouco compreendeu o negro, pois matou um sem motivo, e quando trovou com outro sempre destacou que o adversário era negro. Quando muito amenizava o epíteto – negro –, chamando-o de “moreno”.

"Por isso e por outras razões Martín Fierro não é o meu herói predileto. Chora demais, não demonstra arrependimento pelo que fez e sua relação com Cruz é marcada por uma efusão emocional em tudo distante da alma do gaúcho. Como se não bastasse, em nenhum momento sente falta de mulher..."

Ocorre que Hernández não pretendeu criar nenhum herói mítico. Limitou-se a descrever um tipo humano, com suas fraquezas e virtudes, sem nenhum retoque. Hernández era de uma época em que negro era chamado de negro. Ou pretenderia o “tradutor” que, há mais de século, Hernández falasse em afrodescendente? Sempre houve uma certa hostilidade entre negros e brancos na geografia do gaúcho, a tal ponto que, ainda há pouco – e não duvido que até hoje -, nas cidades da Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, havia bailes de negros e bailes de brancos. Por uma especial deferência dos brancos, os negros podiam dançar uma música, a “valsa dos negros”, no baile dos brancos. Os negros retribuíam na mesma moeda, permitindo aos brancos uma dança. Mas Fierro matou em legítima defesa. Ou pretenderia o “tradutor” que Fierro não defendesse seu pelego?

Estuve un poco imprudente,
Puede ser, yo lo confieso,
Pero el me precipitó,
Porque me cortó primero,
Y a más me cortó la cara,
Que es un asunto muy serio.


Fierro matou um negro como podia ter matador um branco. Aliás, os matou em sua briga com “la polecía”, junto a Cruz. Matou ainda em uma pulpería “un gaucho que hacia alarde de guapo y de peliador”:

Se tiró al suelo; al dentrar
le dió un empellón a un vasco
y me alargó un medio frasco
diciendo: “Beba, cuñao.”
“Por su hermana”, contesté,
“que por la mía no hay cuidao.”


Quantas vezes não morreram maulas na campanha rio-grandense por terem proferido uma palabra que soa a insulto? Tenho casos até em minha familia. O gaúcho não é nenhum ser civilizado, e já ouvi falar de muitos assassinatos por razões passionais. Que, aliás, mesmo no universo urbano eram considerados direito do marido, sob a eufemística alegação de “legítima defesa da honra”. E não foram só estas as mortes de Fierro. No confronto com a policía, quando encontra Cruz, mata vários de seus contendores. É claro que o “tradutor” não fará nenhuma objeção às fanfarronadas de Jayme Caetano Braun, em Bochincho. Afinal, comem no mesmo cocho.

Talvez quem ouça - não creia,
Mas vi brotar no pescoço,
Do índio do berro grosso
Como uma cinta vermelha
E desde o beiço até a orelha
Ficou relampeando o osso!

O índio era um índio touro,
Mas até touro se ajoelha,
Cortado do beiço a orelha


Quanto aos índios, mesmo tendo se refugiado entre eles, Fierro os via como um povo hostil. Buscou refúgio entre eles fugindo da polícia, que o havia recrutado para matá-los.

El que maneja las bolas,
el que sabe echar un pial,
o sentar en un bagual
sin miedo de que lo baje,
entre los mesmos salvajes
no puede pasarlo mal.


É clássica na gauchesca platina a imagem da cativa, a branca raptada pelos índios,vide o soberbo poema de Esteban Echeverria, La Cautiva. E é para defender uma cautiva que Fierro mata um índio.

Era una infeliz mujer
Que estaba de sangre llena,
Y como una Madalena
Lloraba con toda gana;
Conocí que era Cristiana
Y esto me dio mayor pena.

(...)

Toda cubierta de sangre
Aquella infeliz cautiva
Tênia dende abajo arriba
La marca de los lazazos;
Sus trapos echos pedazos
Mostraban la carne viva.

Alzó los ojos al cielo,
En sus lágrimas bañada;
Tenía las manos atadas,
Su tormento estaba claro;
Y me clavó una mirada
Como pidiéndome amparo.

Yo no sé lo que pasó
En mi pecho en ese instante;
Estaba el índio arrogante
Com una cara feroz:
Para entendernos los dos,
La mirada fue bastante.

(...)

En tamaña incertidumbre,
Em trance tan apurado,
No podia por de contado
Escapar-me de outra suerte,
Sino dando al índio muerte
O quedando allí estirado.


Fierro arrisca sua vida para defender uma cativa branca, e o insigne “tradutor” fala de “ranço colonialista, racista, preconceituoso e etnocida que às vezes permeia o belo poema de José Hernández”. Talvez já tenha se acostumado à idéia da moderna antropologia, para a qual é perfeitamente permissível aos selvagens espancar e matar mulheres e crianças. Pelo jeito, já se imbuiu dessa idéia tão encontradiça no Rio Grande do Sul, de que espancar e matar mulheres é perfeitamente legal, digno e justo.

Cabe também lembrar que a prática da degola é uma das mais antigas tradições gaúchas. Escritores e historiadores do Rio Grande do Sul não gostam de tocar no assunto. Erico Verissimo, considerado um grande intérprete da gauchidade – pelo menos para quem não sabe o que é um gaúcho – passou a vol d’oiseau pelo assunto. Distante da literatura do Erico, e sem falar que jamais me aprofundei em sua obra, perguntei a especialista no assunto onde Verissimo aborda o assunto. Está em O Tempo e o Vento, em Incidente em Antares, em O Resto é Silêncio, e também no conto Os Devaneios do General, que reproduzo adiante. Sempre para se referir ao comportamento dos coronéis autoritários ou algo assim.

Quer dizer, o gaúcho que degola é um anjo de candura, a soldo de homens maus. Ora, a prática da degola foi corriqueira entre gaúchos. Segundo o folclorista pendurado nas tetas do Estado, Adão Latorre, a quem se atribui a degola de 300 pica-paus, em Hulha Negra, Bagé, às margens do Rio Negro, não pode ser gaúcho. Verdade que há quem conteste esta versão, dizendo que 300 seriam as baixas totais do inimigo, e apenas 23 “patriotas” teriam sido degolados. Mas não ouvi ninguém contestar a degola de 250 maragatos, pelo pica-pau Cherengue, no Combate do Rio Preto, em represália à degola do Rio Negro.

É óbvio, segundo a ótica do cetegista, que nem Adão Latorre nem Cherengue eram gaúchos. Gaúcho é um santo homem cheio de virtudes. Onde se viu um santo degolar? Com uma diferença. Latorre e Cherengue são personagens históricos e não entes de imaginação, como Fierro. Se houve alguém que ousou pegar o touro pelas aspas, foi o poeta Apparicio Silva Rillo, em O Bicho Tutu. (Republicarei o conto, certamente o mais significativo da cultura gaúcha, já publicado no Rio Grande do Sul).

“Oscilando entre a depressão e o ódio, Martín Fierro é um homem perigoso, bipolar diríamos hoje” – continua o animal. Como se um personagem de mais de século pudesse ser definido por conceitos ianques contemporâneos. Além do mais, não há depressão nem ódio no poema. Fierro canta suas desdichas, que é o que tinha para cantar. E nutre um grande apreço pela humanidade. Quanto ao inimigo... bom, tem de combatê-lo.

Como se um personagem pudesse ser perigoso. Suponho que o sedizente tradutor não goste de ler Homero, afinal na Odisséia Édipo casa com a mãe, comportamento absolutamente condenável num galpão de CTG. Certamente abominará o belíssimo Família de Pascual Duarte, de Camilo José Cela, no qual o personagem-título esfaqueia a própria mãe. Deve odiar Dostoievski, afinal Raskolnikov mata uma velhinha e se arroga o direito ao crime. Shakespeare, ni pensar.

Certamente, detestará ler a Bíblia, onde o bom deus dos judeus e cristãos manda massacrar, arrasar, degolar, destruir cidades, matar tudo que respire. Só o santo homem Moisés mandou degolar três mil judeus. Nem Adão Latorre nem Cherengue ousaram tanto. Em sua estreiteza mental, o “tradutor” pratica, certamente sem saber, um zdanovismo rasteiro e defasado, eivado de stalinismo. O gaúcho não é humano, mas um arquétipo do bem. Ora, realismo socialista é coisa dos anos 30, mas parece só agora ter chegado a Porto Alegre.

“Mas o poema Martín Fierro, sim, é o meu poema predileto”. Se o conhecia desde a infância, como declara, porque pensa em traduzi-lo só depois de velho? E, sem ter jamais traduzido sequer uma canção de ninar, como pretende traduzir poesia? Mais ainda, um dos poemas de mais difícil tradução do continente?

O “tradutor” dedica sua tradução a seu filho. “A ele eu dedico este trabalho com a esperança de que ele continue o meu esforço em defesa da cultura gaúcha e o transmita ao meu neto e aos bisnetos que possam vir. Isto é amor”. Ora, se por cultura gaúcha este senhor entende essa cultura farsesca de CTGs, isto nada tem a ver com Hernández.

Fierro é poesia. CTG é palhaçada, parasitismo estatal. Para este clown, Fierro não é gaúcho porque, pelas circunstâncias da vida, teve de matar alguns inimigos. Seria gaúcho se se pendurasse nas tetas do Estado, sustentando seus luxos com a contribuição compulsória de quem paga impostos, se se fantasiasse com uniforme de gaúcho nos fins de semana e freqüentasse esses lucrativos circos que exploram a credulidade de rio-grandenses ignorantes, que sequer têm a idéia do que um dia foi o gaúcho.