¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, dezembro 18, 2009
 
AOS GIGOLÔS DO GAUCHISMO


Parece que andei ofendendo, em crônica passada, sedizentes brios gaúchos. Digo sedizentes, porque não entendo como gaúcha a cultura dos CTGs. Escreve um leitor: “Agora, é inegável que, pelo bem ou pelo mal, o MTG (Movimento de Tradições Gaúchas) nos seus primórdios resgatou um pedaço da cultura que ia pro lixo, massacrado pelo american way of life (ainda bem que a Coca-Cola ficou). Falar mal dele neste aspecto é também questionar a manutenção dos costumes judaicos, ou alemães (a bandinha, o joelho de porco), ou os baianos com seus rituais etc e tal”.

Cultura que ia pro lixo, massacrada pelo american way of life umas ovas. O país todo continua sendo massacrado pelo american way of life, independentemente de CTGs. Quantos aos costumes judaicos ou alemães, estes sempre existiram. Os costumes atribuídos aos gaúchos pelos cetegistas são fictícios, nunca existiram. A começar pelas ditas danças gaúchas, que foram criadas por publicitários e gigolôs do gauchismo. Defender uma cultura e nela acreditar é uma coisa. Outra coisa é acreditar em ficções, como se realidade fossem. O problema do cetegismo é que, além de mitificar o gaúcho, gera prebendas pagas pelo contribuinte. No fundo, uma velha conhecida nossa. A corrupção, sob capa de defesa das tradições.

Há quem alegue: “Tendo o sr. estudado muito e usufruindo de bolsas internacionais a custo do estado...” Sim, recebi bolsas de estudo - não de Estado - na Espanha e na França. Sem Capes nem CNPq. Dependesse do Brasil, jamais estudaria no Exterior. Nunca fui parasita deste país, onde para ser parasita é preciso ser subserviente e ter pistolão. As bolsas que recebi, não tiveram recomendações de ninguém. Foram decorrências de meu currículo. Fui convidado por Madri e Paris para lá estudar. Do Estado brasileiro, jamais ganhei um centavo. Nem pedi. Jamais onerei o contribuinte brasileiro.

Quanto ao mais, nasci no campo, entre homens do campo, vacas, ovelhas e cavalos. Tudo que faz um homem do campo minhas mãos fizeram, desde carnear ovelha e trançar laço, a castrar terneiros e caçar perdizes em mundéus. Só não tive o prazer de domar um potro, saí muito cedo de meus pagos. E não reconheço como gaúchos essa gente que se fantasia de gaúcho para ir a bailes nos CTGs. São bobalhões urbanos, que se pretendem gaúchos, mas do campo nada conhecem. Não existe gaúcho no asfalto. Não existe gaúcho sem campo.

Curiosamente, lá onde nasci, nos pagos de Ponche Verde, Três Vendas e Upamaruty, ninguém se jacta de ser gaúcho. Gaúchos se pretendem seres urbanos, que nasceram em meio a carros e edifícios, brincando de Batman em corredores de prédios e comendo em churrascarias às quais um gaúcho - falo do verdadeiro - jamais teria acesso. Ser "gaúcho", hoje, custa caro. A começar pelas pilchas. Sem dinheiro, pobre diabo algum consegue ser sócio de CTG. Pra começar, o que ainda resta do gaúcho sequer teria plata para comprar as botas.

Se os donos da cultura no Rio Grande do Sul quiseram um dia chamar de gaúchos os rio-grandenses, nunca houve lei que os impedisse disto. É o homem quem nomeia as coisas, já dizia Platão em Crátilo. As coisas nascem - ou são criadas, descobertas ou inventadas - e em seu ser habita, desde a origem, o inadequado nome que as assinala e distingue das demais. No Uruguai e Argentina, onde há muito mais gaúchos que no Brasil todo, nunca se cometeu esta tolice. Porque uruguaios e argentinos nunca mitificaram o gaúcho.

Não é por acaso que vem de lá o melhor da poesia gauchesca, de autores como Bartolomé Hidalgo (Un gaucho de la Guardia del Monte), Hilario Ascasubi (Santos Vega, el Payador), Estanislao del Campo (Fausto), Antonio Lussich (Los tres gauchos orientales), José Hernández (Martín Fierro), Esteban Echeverría (La Cautiva), Bartolomé Mitre (Armonías de la pampa), Serafim J. Garcia (Tacuruses), Elias Regules (Tapera). Aliás, seria interessante saber se algum dos pretensos defensores do cetegismo ainda sabe o que é um tacuru. Ou um tuco-tuco.

Já no Rio Grande do Sul, que adotou a palavra como gentílico, era preciso enfeitar o personagem. Afinal, não fica bem assumir-se como marginal, ladrão de gado ou degolador. Tenho minhas próprias definições e tampouco há lei que me impeça disto. Só concebo o gaúcho na pampa, entre vacas e cavalos. Gaúcho de asfalto não existe. O que existe no asfalto são palhaços de CTG.

Há quem argumente: “Parece que não é Janer x contestadores, mas uma briga íntima de Janer Cosmopolita x Janer do Ponche Verde". Ora, o Janer cosmopolita é o mesmo do Ponche Verde. Embora hoje não consiga mais viver no campo, prezo muito os pagos de minha infância. Como já dizia Sócrates, a vida no campo é interessante, mas os amigos estão em Atenas. Nasci em campo aberto, o horizonte a léguas de distância, tive minha infância embalada pelo mar verde de alhos-bravos em dias de minuano e até hoje não esqueço o sabor salobre da água de cacimba.

Um dia bati na marca e saí a camperear por este mundo velho sem fronteiras, sempre acompanhado pela lembrança de meus dias de criança. Em Paris ou Estocolmo, em Madri ou Berlim, nunca deixei de ser o “guri do Canário”, como me chamavam. Tentei traduzir isto em Ponche Verde, romance que começa em Paris e termina naqueles pagos. Não vejo conflito algum em ter nascido no campo e depois ter conhecido o planetinha.

Conheço não pouca gente que renega sua infância. Jamais reneguei a minha e dela muito me orgulho. O que estou afirmando é apenas que CTGs são farsas que nada têm a ver com o gaúcho. Ou com o que resta dele, porque o gaúcho mesmo há muito é finado.

Não falta também quem use uma argumentação ad hominem. Se assim escrevo, é porque sou velho e ranzinza. Bom, não posso dizer que sou exatamente jovem, já passei dos 60. Mas me considero mais jovem que muitos jovens. Se assim fosse, então nasci velho e ranzinza. Y a las pruebas me remito. Reproduzo abaixo crônica publicada há 32 anos, onde eu denunciava o caráter de gigolôs do gauchismo de rábulas que, na época, se pretendiam folcloristas.