¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, janeiro 18, 2010
 
DA IMPORTÂNCIA DE ESQUECER


“E chegarão os dias em que os homens esquecerão onde colocaram os pequenos objetos” – diz um dos profetas que anunciam o apocalipse, em A Vida de Brian, dos Monthy Pyton. Ou talvez em O Sentido da Vida, já não lembro. É verdade. Mais dia menos dia, chegaremos lá. Chegarão também os dias em que os homens esquecerão os grandes filmes, acrescentaria.

Leio no New York Times um artigo de Barbara Strauch que faz pensar: “Como abrir novas conexões em um cérebro de meia-idade”. Escreve a jornalista:

"As estantes da minha sala estão repletas de livros. O problema é que, por mais que tenha gostado da leitura, não lembro realmente de ter lido nenhum dos livros.
Certamente sei os pontos principais. Mas, depois de sublinhar todas aquelas partes interessantes, não retive nada mais? É enlouquecedor e nada excepcional para um cérebro de meia-idade: não esqueço só livros inteiros, mas filmes que acabei de ver, os cafés da manhã que acabei de tomar, e os nomes, ah, os nomes são terríveis".

É o meu caso. Não que eu não lembre de ter lido algum de meus livros. Lembro muito bem e mais ainda. Cada um de meus livros tem sua história e sei muito bem onde os comprei. Lembro também das peripécias para encontrá-los. De modo geral, quando busco um livro, tenho de fazer uma longa peregrinação a antiquários. O problema é lembrar o conteúdo dos livros. Mas não atribuo isto a um problema de idade.

Determinados livros nos transmitem uma massa tal de informações que nossa memória não comporta. Não adianta ser jovem. Outro dia, comentei que havia comprado na Espanha um livro que não teria sido traduzido no Brasil, Los Orígenes del Fundamentalismo en el judaísmo, el cristianismo y el Islã, da teóloga britânica Karen Armstrong. Um leitor advertiu-me que o livro fora publicado aqui, em 2001, pela Companhia das Letras.

Fui conferir minha biblioteca. Lá estava o livro, devidamente sublinhado e comentado. Sim, lembrava dele. Mas não de seu conteúdo. Pudera! Em uma só página, a autora repassa um tamanho catatau de dados que memória alguma guarda. Imagine então relembrar 500 páginas. O remédio é sublinhar. Por essas razões, não gosto de ler livros emprestados. Livro alheio não dá pra sublinhar. Livro meu, sublinho à vontade. Isto se torna uma espécie de diário, que me relembra as preocupações que tive em minhas diversas idades.

Certa vez tentei ler Grandeur et Décadence de Rome, de Guglielmo Ferrero, seis volumes. Desisti. Havia tantas guerras por página, que na página seguinte eu já não lembrava de nenhuma. Verdade que tenho uma memória bastante nítida da História das Origens do Cristianismo, de Ernest Renan, em sete volumes. Mas a narrativa de Renan é linear e tem sabor de romance. Não é o caso da Armstrong ou de Ferrero, que amontoam dezenas de fatos históricos em uma só página. Daí a importância do saber dicionarizado. Você vai ao verbete e lá está o que busca. Não falo exatamente de dicionários de vernáculo. Mas de dicionários de literatura, história, filosofia ou teologia.

Continua a jornalista: “Cérebros de meia-idade (que, com o aumento da expectativa de vida, agora vai dos cerca de 40 até quase os 70 anos) também se distraem mais facilmente. Comece a ferver água para o macarrão, vá atender à campainha, e – vupt - a lembrança da água fervente sumiu”. Cá entre nós, isto jamais aconteceu comigo. Pra começar, jamais fervi água para macarrão.

“Daí a pergunta: um cérebro velho é capaz de aprender e lembrar o que aprende? Sim. Embora seja tentador focar nos defeitos dos cérebros mais antigos, os cientistas têm olhado cada vez mais fundo na forma como os cérebros envelhecem e confirmam que eles continuam a se desenvolver durante a meia-idade e depois. Muitas opiniões tradicionais, inclusive a de que 40% das células cerebrais são perdidas, foram revertidas. O que está na sua cabeça pode não ter sumido, mas simplesmente se amontoado nas dobras dos seus neurônios”.

É possível. De minha parte, a memória do disco rígido continua mais ou menos intacta. Lembro com nitidez de leituras da adolescência e mesmo da infância. O que está me falhando é a memória RAM, isto é, os conhecimentos adquiridos mais recentemente. Tive experiência curiosa em meus dias de Folha de São Paulo e Estadão. Redigia uma série de notícias e, dia seguinte, lia o que havia escrito como se fosse texto que jamais havia lido. Isto é normal em jornalistas. É que ligamos o piloto automático e vamos redigindo. Uma vez desligada a máquina, a memória RAM se evola.

“Uma explicação sobre como isso ocorre vem de Deborah Burke, professora de psicologia do Pomona College, da Califórnia, que pesquisou aquele fenômeno em que algo está "na ponta da língua", mas não vem à mente – continua Barbara Strauch –. Ela mostrou que isso aumenta em parte porque as conexões neurológicas, que recebem, processam e transmitem a informação, podem se enfraquecer com a falta de uso ou a idade. Mas ela também descobriu que, se você ouve sons próximos àquilo que tenta lembrar - digamos, alguém fala em caroço ("pit") enquanto você tenta lembrar o nome de Brad Pitt -, de repente a palavra perdida pipoca na mente. A similaridade nos sons pode ativar uma conexão cerebral débil – associação que costuma acontecer automaticamente e passa despercebida”.

É meu recurso. Há palavras que, sei lá por quais razões, tenho dificuldade em lembrar. Uma delas é endocrinologista. Cada vez que ia falar desta especialidade, me acometia uma pane mental. Tive de recorrer a caminho mais longo. Associei a palavra à odontologia. Penso em endodontia. De endo em endo, chego a endócrino.

Tive um colega de jornalismo, redator impecável, que tinha uma dificuldade tremenda ao flexionar chapéu. Precisava recorrer ao dicionário. Jamais sabia se o plural era chapéus ou chapéis, dúvida bastante encontradiça em vestibulandos. Pelo jeito, alguma sinapse estava desconectada. Sugeri que pensasse em duas abas voltadas para o alto. É o U. Acho que resolvi seu problema.

Recursos mnemotécnicos não são novidade. Na Idade Média, para lembrar de um longo discurso, os pregadores situavam cada capítulo no interior de uma catedral. Na nave, o cerne do raciocínio. Nas capelas laterais, as subdivisões do discurso.

Para relembrar leituras, só há um recurso: sublinhar, sublinhar e sublinhar. Se lemos um livro de 500 páginas, quantas delas guarda nossa memória? Talvez dez, e olhe lá. Se soubermos em quais obras estão os textos que queremos lembrar, já é lucro. Enquanto não se consegue plugar um chip de 300 ou mais gigabytes a nosso cérebro, melhor andar sempre de caneta em punho quando se lê um livro.

Mas memória absoluta é coisa que não desejo a ninguém. O esquecimento faz bem. Há quem diga que um homem enlouqueceria se tivesse uma memória total. É a maldição de Funes, el memorioso, o personagem de Borges. Se lembrássemos de todas as circunstâncias funestas de nossas vidas, nossa existência seria um sofrimento contínuo. Não por acaso, empurramos o pior para o porão do oblívio.

Ou seria muito difícil viver.