¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, janeiro 02, 2010
 
FASANO DEFENDE
VIGARICE COMPULSÓRIA



Leio na Veja entrevista com Rogério Fasano, um dos papas da gastronomia em São Paulo. O repórter pergunta o que justifica os 27 reais de um couvert em seu restaurante, que consta de um pãozinho com manteiga.

- Isso é uma coisa que eu gostaria de esclarecer, porque ninguém no Brasil sabe o que é couvert. A palavra francesa vem do italiano coperto, que quer dizer, literalmente, "cobertura". É aquilo que o restaurante cobra para garantir a reposição do que ele considera importante oferecer ao cliente. No meu caso, o copo de cristal Riedel que custa 30 dólares e que cedo ou tarde vai se quebrar, a porcelana importada, a toalha de linho egípcio etc.

Ora, ninguém é uma palavra muito forte. Fasano subestima os brasileiros. Há muita gente que sabe o que é couvert e por isso não aceita tais besteiras. Perguntas: qual a diferença de sabor de uma bebida que está em um cristal Riedel e outra que está em um copo de vidro? Qual a diferença de uma porcelana importada e uma porcelana nacional? Qual a diferença entre uma toalha de linho egípcio e uma toalha de um tecido qualquer? Os esnobes que me desculpem, mas a diferença é uma só: nenhuma. Eu até posso sentir a diferença entre um lençol de linho egípcio e outro qualquer, afinal o lençol me cobre o corpo. Mas a toalha só cobre a mesa.

Em suma, Fasano não está cobrando pelo pãozinho, mas por esse fausto bobo que agrada tanto a nouveaux-riches. Que deixe então de eufemismos. Que cobre pela entrada em seu restaurante. Nenhum pãozinho com manteiga vale 27 reais. Restaurantes como o Fasano vivem de pessoas jurídicas, não de pessoas físicas. Vive dessa gentalha como Sarney, Delfim Netto, Genoíno, Zé Dirceu et caterva, que nunca pagam por suas contas. Têm verbas de representação. Sentem-se muito importantes pagando caro. Quem paga a conta somos nós, os contribuintes.

Certa vez, estive em um desses restaurantes. Não por minha vontade, que se dela dependesse jamais iria. Fui convidado por um amigo, que naqueles dias ganhara muito na Bolsa. Não foi o Fasano, foi o Massimo. Foi a única vez em que devolvi um prato em São Paulo. Era um coelho, que veio gris e duro como sola de sapato. O garçom estava perplexo, suponho que ninguém jamais havia devolvido um prato no Massimo. Se servirem gato por lebre, o cliente habitual dessas casas deglute alegremente o gato e louva a lebre. O repórter pergunta se o pãozinho com manteiga já não estaria embutido no preço da comida. Responde Fasano:

- Não, o que está no preço da comida é o custo da comida. Couvert é diferente. É o valor cobrado para que o restaurante mantenha sempre a categoria do material oferecido. E esse valor vai depender se os talheres são de prata de lei ou de inox, se o guardanapo mede 60 por 60 centímetros ou 20 por 20 centímetros. Couvert não tem nada a ver com pão de queijo, manteiga, parmesão... Por isso é um erro essa recomendação que certa crítica gastronômica instituiu no Brasil: a de não pedir couvert. É um absurdo. Na Itália, não existe "não pedir couvert". Se você não quiser comer grissini, não come, mas o coperto está lá e custa, sei lá, 10 euros. E vem só grissini, nem manteiga vem, porque italiano come três pratos e é contra empurrar antes para o cliente uma porção de coisas que só vão desvalorizar a comida a ser servida.

Alto lá, Monsieur! Comi em muitos restaurantes na Espanha e França, onde fui servido com talheres de prata e nunca ninguém me empurrou o couvert. O couvert é apenas sugerido, posso aceitá-lo ou não. Em novembro passado, almocei no Oriente, restaurante madrilenho que às vezes é freqüentado por El Rey. Talheres e baixelas de prata, mesas de mármore. Lá, recusar o couvert é direito do cliente. Problema nenhum.

Fasano mente. Mente quando afirma que “na Itália, não existe ‘não pedir couvert’. Se você não quiser comer grissini, não come, mas o coperto está lá e custa, sei lá, 10 euros”. Você pode muito bem recusar o coperto na Itália. Está previsto em lei. Y a las pruebas me remito. No Lazio, onde fica Roma, há uma lei, datada do 29 novembre 2006, cujo artigo 16 § 3 diz:

“Qualora il servizio di somministrazione sia effettuato al tavolo, la tabella od il listino dei prezzi deve essere posto a disposizione dei clienti prima dell'ordinazione e deve indicare l'eventuale componente del servizio con modalità tali da rendere il prezzo chiaramente e facilmente comprensibile al pubblico. E' inoltre fatto divieto di applicare costi aggiuntivi per il coperto”.

A U.Di.Con. - Unione per la difesa dei consumatori – lançou recentemente uma campanha que acolhe as denúncias de quem foi obrigado a pagar o coperto nos restaurantes. O objetivo é denunciar como ainda é usual o hábito de fazer os clientes pagarem o coperto nos restaurantes de Roma e do Lazio. Ao mesmo tempo, providencia-se uma espécie de livro branco dos restaurantes honestos da capital.

Em Portugal, por exemplo, couvert compulsório é considerado crime e pode dar cadeia. Diz a lei 24/96, de 31 de julho, ainda em vigor: “O consumidor não fica obrigado ao pagamento de bens ou serviços que não tenha prévia e expressamente encomendado ou solicitado, ou que não constitua cumprimento de contrato válido, não lhe cabendo, do mesmo modo, o encargo da sua devolução ou compensação, nem a responsabilidade pelo risco de perecimento ou deterioração da coisa."

O couvert, desde que não solicitado, é uma gentileza da casa, ao qual não corresponde nenhum pagamento. Mais ainda: segundo a Associação Portuguesa de Direito do Consumo (APDC), qualquer consumidor pode recusar pagar o couvert que habitualmente os restaurantes colocam na mesa dos clientes sem ser pedido, mesmo que seja consumido. Segundo a associação, se o cliente recusar pagar o couvert e o restaurante exigir o dinheiro, o proprietário do estabelecimento estará incorrendo no crime de especulação, previsto e punido pelo artigo 35 da Lei Penal do Consumo (DL 28/84, de 20 de Janeiro). O crime de especulação é passível de pena de prisão de seis meses a três anos e de pena de multa não inferior a cem dias.

Mas não precisamos ir à Itália ou a Portugal para constatar a vigarice da cobrança compulsória do couvert. Sua proibição está prevista no nosso Código do Consumidor, artigo 39 § 1: “É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços: - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos”.

Ao afirmar que “é um erro essa recomendação que certa crítica gastronômica instituiu no Brasil: a de não pedir couvert”, em verdade Fasano está dizendo: você, que freqüenta meu restaurante, deve renunciar a todo e qualquer direito que a lei lhe confere. Não é a crítica gastronômica que instituiu no Brasil a prática de não pedir couvert. É a lei. Pelo jeito, o reputado restaurador se considera acima das leis.

Afirma ainda Fasano: “Nunca entendi esse termo ‘cozinha honesta’. O que é isso? O bifinho estava duro, mas o preço era bom? Comida é boa ou é ruim. Em relação aos bons ingredientes, não há milagre: custam caro".

Sofisma barato. Fasano lança no ar um argumento fácil de combater, argumento que ninguém empunha. Jamais alguém dirá que bife duro é cozinha honesta. Carne dura me foi servida no Massimo. Nem perguntei o preço do prato, porque afinal não foi cobrado. Mas barato não devia ser. Ingredientes exóticos podem até ser caros. Mas bons ingredientes não o são necessariamente. Eu viajo em parte para comer. Gosto de degustar outras cozinhas, pratos que não conheço. Ora, tenho degustado pratos excelentes, tanto em Madri, como Barcelona, Paris ou Roma, por no máximo 25 euros. Em geral, menos. Sem couvert compulsório. Mais ainda: como como muito pouco, dependendo da parceira, costumo dividir o prato.

Que alguém diga bobagens em uma entrevista, isto é direito de cada um. Bobagem, infelizmente, ainda não é crime. O que espanta é que um repórter aceite passivamente tais bobagens, sem questionar o entrevistado. Fasano só faz sentido em um país de novos ricos que não sabem comer e acham que estão comendo bem só porque pagam caro.

E estes são legião.