¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, janeiro 03, 2010
 
IRLANDA VOLTA AOS
TEMPOS BÍBLICOS



Leio no El País que a católica Irlanda, em pleno 2010, voltou aos tempos bíblicos. Segundo o jornal, uma nova lei, a “Ley de Defimación”, pune com até 25 mil euros a pessoa que proferir blasfêmias. Para começar, procurei a palavrinha usada pelo jornal em meus dicionários e não a encontrei. Suponho que o redator tenha pretendido grafar difamación. Enfim, exista ou não defimación, o fato é que a lei define como blasfêmia uma expressão “tremendamente abusiva ou insultante em relação a uma matéria tida como sagrada por qualquer religião, que cause indignação em um substancial número de seguidores dessa religião”. A lei entrou em vigor à 0h00 do dia 1º passado.

Ou seja, se você afirmar que Jeová era um deus genocida, que Moisés ou Josué eram assassinos de mão cheia, que Maomé, além de degolador era pedófilo, ou mesmo que Edir Macedo é um vigarista de alto bordo, você está sujeito a desembolsar a nada desprezível soma de 25 mil euros. Voltaire e Nietzsche devem estar se revirando em suas tumbas.

Para Michael Nugent, líder de um grupo de ateus, a campanha é absurda “porque as leis religiosas medievais não têm lugar em uma moderna república secular onde as leis criminais devem proteger as pessoas e não as idéias. E é perigoso porque incentiva a indignação religiosa, e porque Estados islâmicos, liderados pelo Paquistão, já estão usando a redação da lei irlandesa para promover novas leis contra a blasfêmia junto à ONU".

Blasfêmia é prática usual de sociedades onde o pensamento religioso exerce pressão. Numa sociedade fundamentalmente laica não existe blasfêmia. Como não poderia deixar de ser, a palavrinha já está no Pentateuco. Ou na Torá, como quisermos. O termo designa todo atentado à majestade de Deus. O terceiro mandamento proíbe explicitamente “pronunciar em vão o nome do Eterno”. A bíblia proíbe igualmente ‘injuriar Deus” e condena à lapidação quem quer que tenha pronunciado tal blasfêmia. Até que os legisladores irlandeses estão sendo lenientes, ao condenar o blasfemador apenas a uma multa.

Segundo meu fiel Dictionnaire Encyclopédique du Judaïsme, os rabinos estenderam esta proibição à humanidade inteira. Na época da Mishná, apenas uma profanação flagrante do tetragrama, o nome inefável de Deus, implicava a pena de morte. Quanto aos que se tornavam culpados de uma blasfêmia em relação a qualquer outro nome divino, eram passíveis de receber golpes de chicote. Quando os judeus perderam sua autonomia jurídica, a punição prevista para o blasfemador foi reduzida a uma excomunhão (ḩèrem).

A vingar a lei, os irlandeses vão ter de começar a expurgar suas bibliotecas e vigiar o mundo editorial. Cuidado com Voltaire:

“A Bíblia: o que alguns loucos escreveram, o que os imbecis ordenam, o que os truões ensinam e o que aos jovens se obriga a aprender de memória”.

“O cristianismo é a mais ridícula, absurda e sangrenta religião que jamais assolou o mundo”.

“A religião é a fonte de todas as loucuras e desordens imagináveis. É a mãe do fanatismo e da discórdia civil. É o inimigo da humanidade”.

E atenção especial a Nietzsche, que propõe em sua Lei contra o Cristianismo:

Datada do dia da Salvação: primeiro dia do ano Um (em 30 de Setembro de 1888, pelo falso calendário).

Guerra de morte contra o vício: o vício é o cristianismo.

Artigo Primeiro - Qualquer espécie de antinatureza é vício. O tipo de homem mais vicioso é o padre: ele ensina a antinatureza. Contra o padre não há razões: há cadeia.

Artigo Segundo - Qualquer tipo de colaboração a um ofício divino é um atentado contra a moral pública. Seremos mais ríspidos com protestantes que com católicos, e mais ríspidos com os protestantes liberais que com os ortodoxos. Quanto mais próximo se está da ciência, maior o crime de ser cristão. Conseqüentemente, o maior dos criminosos é filósofo.

Artigo Terceiro - O local amaldiçoado onde o cristianismo chocou seus ovos de basilisco deve ser demolido e transformado no lugar mais infame da Terra, constituirá motivo de pavor para a posteridade. Lá devem ser criadas cobras venenosas.

Artigo Quarto - Pregar a castidade é uma incitação pública à antinatureza. Qualquer desprezo à vida sexual, qualquer tentativa de maculá-la através do conceito de "impureza" é o maior pecado contra o Espírito Santo da Vida.

Artigo Quinto - Comer na mesma mesa que um padre é proibido: quem o fizer será excomungado da sociedade honesta. O padre é o nosso chandala - ele será proscrito, lhe deixaremos morrer de fome, jogá-lo-emos em qualquer espécie de deserto.

Artigo Sexto - A história "sagrada' será chamada pelo nome que merece: história maldita; as palavras "Deus", "salvador", "redentor", "santo" serão usadas como insultos, como alcunhas para criminosos.

Artigo Sétimo - O resto nasce a partir daqui.

Nietzsche - O Anticristo


E com muitas outras coisas terão de preocupar-se os irlandeses. Os filmes dos Monty Python então deverão ser expurgados da ilha. A começar por A Vida de Brian, que reduz Cristo a um maluco que não tem nem idéia do que acontece à sua volta. E continuando por O Sentido da Vida, de onde reproduzo a canção que segue.