¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, janeiro 04, 2010
 
O INDIVÍDUO E A HISTÓRIA


(Faz hoje 50 anos que morreu Albert Camus, o pied-noir Prêmio Nobel, em um estúpido acidente de carro. Em sua memória, reproduzo um excerto de minha tese de doutorado em Letras Francesas e Comparadas - Mensageiros das Fúrias - defendida em 1981, na Université de la Sorbonne Nouvelle, Paris III. A polêmica, que constou de uma série de artigos sob o título geral de "Ni victimes ni bourreaux", é praticamente desconhecida no Brasil).


Valerá a pena, para o indivíduo, dar sua vida pelo futuro da sociedade sem classes? Esta questão, de ordem existencial, o marxismo não a respondeu. Para Camus, o sacrifício do indivíduo seria concebível se a luta de uma ou duas gerações fosse suficiente para se chegar à sociedade sem classes. O futuro tem então um rosto para o militante, é o rosto de seu neto. Mas é preciso não pouca fé para lutar durante gerações por um futuro que tarda a chegar, "é preciso então as certezas da fé para aceitar morrer e matar".

Na teologia marxista, o fim da história coincide com o fim da economia política, isto é, o fim de toda dor. "Nós estamos no Éden". Mas Marx, da mesma forma que os grandes profetas, não dá um prazo para este acontecimento. O marxismo se contenta em dizer que os prazos são longos e é preciso contar com o fim que tudo justifica.

A morte ou o suicídio, isto é, sempre a morte, será uma preocupação em toda a obra camusiana. Ao voltar de uma viagem aos Estados Unidos, ele escreve em seu diário que "o único problema moral verdadeiramente grave é o assassinato". Esta frase, com duas variantes, é a nova formulação da abertura de O Mito de Sísifo. Pois Camus, nesta época de sua vida, não mais estabelece grandes diferenças entre um e outro. Nos Carnets, insistirá sobre a pureza do terrorista Kalayev, para o qual morte igual a suicídio, pois uma vida é paga com uma outra. "O raciocínio é falso, mas respeitável. (Uma vida roubada não vale uma vida dada). Hoje, o assassinato por procuração. Ninguém paga".

Suas críticas a uma filosofia que justifica a morte do indivíduo em função de um hipotético ideal futuro são severas. Em 1946, Camus publica em Combat uma série de artigos, sob o título genérico de "Ni victimes ni bourreaux", reflexões que antecipam O Homem Revoltado. Se o século XVII foi o século das matemáticas, argumenta Camus, se o XVIII foi o século das ciências físicas, se o XIX foi o da biologia, o homem contemporâneo vive o século do medo.

"Dir-me-ão que isto não é uma ciência. Mas, primeiramente, a ciência aí está para qualquer coisa, pois seus últimos progressos teóricos a levaram a negar-se a si mesma, dado que seus aperfeiçoamentos práticos ameaçam a terra inteira de destruição. Além disso, se o medo em si mesmo não pode ser considerado como uma ciência, não resta dúvida alguma que seja uma técnica".

O que choca Camus é o fato de que homens viram "mentir, aviltar, matar, deportar, torturar" se façam de surdos cada vez que se tenta dissuadir os homens que mentiam, aviltavam, matavam, deportavam e torturavam, pois estes lutavam em nome de uma abstração. O diálogo entre os homens morreu. "Um homem que não se pode persuadir é um homem que faz medo".

Camus não aceita os constrangimentos de sua época, ou ao menos os constrangimentos de certas correntes intelectuais: não se pode falar do expurgo de artistas na Rússia porque isto favoreceria a "reação". Impossível condenar o apoio dos anglo-saxões a Franco, porque isto seria favorecer o comunismo. Homens concretos, em carne e osso (e por estes homenzinhos, sem H maiúscula, Sábato também se bate sem trégua) são massacrados, triturados em nome de solenes ideais. Este massacre não deve ser denunciado, para não impedir a marcha da Idéia. "Vivemos no mundo da abstração, no mundo dos escritórios e das máquinas, das idéias absolutas e do messianismo sem nuanças".

Para escapar a este terror, Camus propõe uma pausa para reflexão, sem esquecer que o terror não é propício à reflexão. Chama os homens sem partido, ou mesmo os homens de partido e que nele se sentem mal, todos aqueles que duvidam da realização do socialismo na Rússia e do liberalismo na América, chama mesmo aqueles que têm crenças mas que se recusam a impô-las pelo assassinato, individual ou coletivo. Revolta-se contra a justificação do assassinato em nome de abstrações, por mais atraentes que sejam. E lança seus contemporâneos duas questões fundamentais:

"Sim ou não, direta ou indiretamente, você quer ser assassinado ou violentado? Sim ou não, direta ou indiretamente, você quer assassinar ou violentar? Todos aqueles que responderem negativamente a estas duas questões estão automaticamente embarcados em uma série de conseqüências que devem modificar sua maneira de expor o problema".

O que ele pede é um mundo, não onde não se assassine – "não somos loucos a tal ponto!" - mas onde ao menos o assassinato não seja legitimado. Choca-se com o fato de que todos aqueles que lutam por ideais históricos são homens cheios de boa vontade e que o resultado de sua ação seja o assassinato, a deportação e a guerra. A recusa de legitimar o assassinato deve conduzir-nos a uma reconsideração da noção de utopia.

"A utopia é o que está em contradição com a realidade. Deste ponto de vista, seria totalmente utópico querer que ninguém mate ninguém. É a utopia absoluta. Mas é uma utopia de grau bem mais viável pedir que o assassinato não mais seja legitimado".

Sua proposição básica é que, se nos é impossível tudo salvar, que ao menos seja salvo o corpo de cada indivíduo. Que homem algum seja vítima, que nenhum homem sejas carrasco. Ora, enunciadas em uma época na qual Stalin fascinava os intelectuais do Ocidente, estas reflexões vão provocar reações pouco corteses. Em Combat, o artigo passa despercebido. Publicado novamente em Caliban (novembro 1947), a crítica camusiana ao stalinismo provocará não poucos resmungos. A primeira reação vem do barão Emmanuel d'Astier de la Vigerie, homem de direita antes da guerra, que se dobrara aos novos ventos da História. Em um artigo publicado na mesma revista, em abril de 1948, d'Astier não aceita uma terceira opção. Rejeitar a revolução comunista significaria servir a causa do capitalismo. Ergo, Camus é um moralista, um santo leigo, um cúmplice do capitalismo.

Este artigo dá a Camus ocasião de precisar sua crítica ao marxismo. As duas respostas a d'Astier (Caliban, junho 48 e La Gauche, outubro 48) oferecem já os elementos fundamentais da parte mais polêmica de O Homem Revoltado, publicado em 1951. Camus insiste na recusa de toda legitimação da violência, quer venha de uma razão de Estado absoluta, quer de uma filosofia totalitária. Não prega a não-violência, não é ingênuo a tal ponto. Julga que a violência deve ser delimitada. "É preciso acantoná-la em certos setores quando ela é inevitável, amortecer seus efeitos terríficos, impedindo-a de ir até o ápice de seu furor". Recusa a violência confortável que provém de intelectuais cujas palavras vão mais longe que os atos. Despreza os chamamentos ao assassinato. Só cessará de desprezá-los quando estes intelectuais ousarem apanhar o fuzil. "Não se pode estar ao lado dos campos de concentração. Compreendi então que eu detestava menos a violência do que as instituições da violência".

Nesta época, surge o problema dos comunistas gregos condenados à morte. Camus – que intervirá por suas libertações – pensa que o problema não pode se resumir a uma questão estatística. Recusa a idéia de que, para que os comunistas gregos sejam poupados, seja necessário matar um certo número de não-comunistas, e que só os comunistas mereçam ser salvos. "Eles, com efeito, o merecem, mas ao mesmo título que os demais homens".

Camus acusa os marxistas de não admitir que os "dados objetivos" da época de Marx mudaram. O marxismo foi concebido no tempo da máquina a vapor e do otimismo científico. Vivesse Marx no século do átomo e da relatividade, se tivesse testemunhado o desenvolvimento científico produzido após sua morte, com o crescimento dos meios de destruição, talvez reconhecesse que os famosos dados haviam mudado.

No final do debate com d'Astier, Camus sugere uma proposição embaraçosa: uma tomada de posição conjunta contra todos os totalitarismos, sejam de esquerda ou direita. Camus assinaria prazerosamente – e ele o fez – uma carta aberta à imprensa americana para protestar contra a cumplicidade direta ou indireta dos Estados Unidos nas execuções gregas. A esta juntará um protesto contra o apoio a Franco na Espanha. Com uma só condição: que d'Astier se disponha a publicar, na imprensa francesa (já que a Rússia não a publicaria) uma carta aberta onde ele tome posição contra o sistema concentracionário soviético e contra a utilização da mão-de-obra dos deportados.

Sem resposta.