¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, janeiro 09, 2010
 
O PONTO G EXISTE,
EU O ENCONTREI



A frase “Deus existe, eu O encontrei”, tão repetida por tantos crentes, é em verdade o título de um livro no qual André Frossard, editor-chefe durante várias décadas do Le Figaro, conta sua experiência de fé. Certa vez entrou em um lugar onde alguns cristãos estavam reunidos. Incrédulo e livre-pensador, de lá Frossard saiu como cristão convertido. A título de piada, glosei o título na crônica de ontem: “O ponto G existe, eu o encontrei”. Pois não é que antecipei uma manchete do Libération? Continuando sua defesa intransigente do polêmico ponto, o jornal, em sua edição de hoje, traz:

LE POINT G EXISTE, JE L'AI RENCONTRÉ

Bem entendido, não é a confissão de nenhuma leitora que o tenha encontrado. Trata-se de uma entrevista com o médico e sexólogo Damien Mascret, autor de La Revanche du clitoris. Segundo o sexólogo, tudo que o estudo de Tim Spector e Andrea Burri demonstra é que as pessoas não herdam geneticamente a faculdade de encontrar seu ponto G. Considera que o estudo repousa apenas sobre um questionário. Tudo não passa de declarações. “Eu penso que teríamos o mesmo resultado se perguntássemos aos homens: você já notou sua próstata? Se a metade dos homens tivesse dito não, teríamos concluído que a próstata tem existência real?”

Ok! Mas a próstata é palpável. O tal de ponto está mais para hipótese que outra coisa. Mascret cita estudo um estudo de ultra-sonografia, de autoria de Français Pierre Foldes, (cirurgião do Centre Hospitalier de Saint-Germain en Laye e especialista mundial da reparação de clitóris excisados) e Odile Buisson, publicado em The Journal of Sexual Medicine, em maio de 2009. Segundo o estudo, “a sensibilidade particular da parte inferior da parede vaginal anterior poderia ser explicada pela pressão e pelos movimentos do clitóris durante a penetração vaginal e as contrações perinais que daí decorrem”. Até aí, ponto G nenhum. E se existisse, sua existência teria sido recém comprovada ... no ano passado.

Mascret cita também uma equipe coreana que fez dissecções da parede vaginal de sete mulheres recém-mortas. Após dividir a parede em cinco segmentos partindo do clitóris, os pesquisadores acharam uma forte concentração de fibras nervosas no segundo quinto. “Nós pensamos que esta parte da parede vaginal anterior pode ser chamada Ponto G” (Journal of Sex and Marital Therapy, 2009).

Nós pensamos... Pode ser chamada... Tudo muito vago. O estudo também é do ano passado. Pelo jeito, o ponto G recém está começando carreira. Que mais não seja, que órgão é esse cuja existência só pode ser constatada após a morte de quem o porta?

É de espantar o empenho com que o Libé, em plena França do século XXI, se lança em defesa de uma ficção de sexólogos. Verdade que a imprensa, por mais lúcida que se pretenda, sempre acaba caindo em contos semelhantes. Em 1983, a Veja endossou como verdade científica uma brincadeira de 1º de abril, lançada pela revista inglesa New Science. Tratava-se de uma nova conquista científica, um fruto de carne, derivado da fusão da carne do boi e do tomate, que recebeu o nome de boimate. Se a editoria de ciências de Veja visse esta notícia num jornal brasileiro, evidentemente ficaria com um pé atrás.

Para a revista, a experiência dos pesquisadores alemães permitia "sonhar com um tomate do qual já se colha algo parecido com um filé ao molho de tomate. E abre uma nova fronteira científica". Isso que a New Science dava uma série de pistas para evidenciar a piada: os biólogos Barry McDonald e William Wimpey tinham esses nomes para lembrar as cadeias internacionais de alimentação McDonald´s e Wimpy´s. A Universidade de Hamburgo, palco do "grande fato", foi citada para que pudesse ser cotejada com hamburguer. Os alertas de nada adiantaram. Como se tratava de uma prestigiosa publicação européia, a Veja embarcou com entusiasmo na piada. O responsável pela mancada, em vez de ser demitido, é hoje um dos editores da revista.

Em 1988, foi a vez de uma prestigiosa revista científica de língua inglesa, a Nature, cair em barriga semelhante. Desta vez, a barriga não decorria de uma piada, mas de um embuste mesmo. Jacques Benveniste, doutor em medicina e diretor de pesquisas do Inserm, na França, criou a exótica teoria da memória da água. Isto é, a água conservaria na memória as moléculas de base com as quais havia sido colocada anteriormente em contato. A quem interessava o crime? Aos homeopatas, que se regozijaram ao supor que finalmente tinham a prova indiscutível de que a homeopatia era ciência. A memória da água fez longa carreira, mobilizou prêmios Nobel e laboratórios na Europa toda. O sóbrio Le Monde caiu como um patinho recém-emplumado, concedendo várias páginas ao embuste.

A ficção da vez agora é outra. Deus morreu, o muro de Berlim já caiu, o comunismo desmoronou, a União Soviética ruiu. O ponto G continua em pé.