¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, janeiro 11, 2010
 
SOBRE VIAJANTES E TURISTAS


Articulistas que se pretendem informados é o que não falta em nossa imprensa. Partem às vezes de premissas corretas para chegar a conclusões bobas. É o caso de Luiz Felipe Pondé, que assina crônica na Folha de São Paulo. Em seu artigo de hoje, retoma a distinção que um dia fez “o filósofo romeno radicado na França Émil Cioran (século 20)” entre os "novos bárbaros" (os turistas), que tomaram o lugar dos "viajantes", pessoas que amam conhecer o mundo pra se "espantar" com ele, e não torná-lo seu "churrasco na laje em Paris".

Para começar, Cioran nunca foi filósofo. Era apenas um ensaísta. Nunca elaborou um sistema filosófico. Ao situá-lo como filósofo, Pondé está participando dessa moda contemporânea, que considera filósofos tanto a Marilena Chauí como Olavo de Carvalho. Existe no Brasil um mercado tal para filósofos, que o falecido senador Arthur da Távola, velho comunista, pretendeu regulamentar a profissão. Filósofo só com carteirinha. Pelo que sei, o projeto gorou.

Ao situar Cioran no século XX, o cronista pensa estar falando para um público de analfabetos, como se alguém não soubesse que o escritor romeno viveu no século passado. Por outro lado, duvido que Cioran tenha empregado qualquer expressão que possa ser traduzida como churrasco na laje. Se Paris tem seus grelhados, Paris não tem lajes. Mas isto é o de menos. Continua Pondé:

“Além do fato de que o turismo, para sobreviver, precisa ser barato e, como tudo que tem que ser barato, se torna brega. Os aviões cada vez mais se parecem com ônibus cheios de gente mal-educada tirando fotos de si mesmos enquanto berram sobre seus planos de visitar dez cidades em dez dias pagos em cem vezes. Com a fúria típica da "massa feliz", esses neobárbaros transformaram a antes deliciosa experiência de viajar para conhecer novos mundos numa visita a um shopping center de periferia e suas praças de alimentação”.

Até aí, estamos todos de acordo. Nada mais abominável que este turismo de massa, promovidos pelas CVCs da vida. Conheço estes animais que fazem dez países em dez dias. É gente que pensa que está viajando, mas não está viajando. Imersos dentro de uma bolha de pessoas do mesmo país, falando a mesma língua, podem estar em qualquer lugar do mundo, mas não saem da bolha. Melhor fariam se sentassem diante de uma televisão e vissem programas turísticos. Gastariam menos, cansariam menos e não atrapalhariam a vida de quem gosta de viajar. A bobagem surge quando o cronista afirma:

“O que fazer? Nada. Fatos como esses são meras seqüelas da democracia do capital. Uma contradição sem solução: para funcionar, o capitalismo tem que tornar tudo acessível, e, por isso, tudo tem que virar um supermercado num sabadão. É como conhecer uma praia deserta: se você contar para todo mundo, ela logo vira uma praia insuportável como todas as outras. A horda de bárbaros chegará com suas sacolas, suas crianças, seu ovo duro e sua música horrorosa.

“As produtoras de viagem precisam desenvolver ferramentas pra preservar (assim como quem preserva espécies em extinção) espaços no mundo para quem não gosta de churrasco na laje como estilo de vida. Como? Rompendo com operadoras de turismo de massa, montando trajetos para pessoas que detestam museus lotados e jantares típicos bregas. Entendendo que o "tédio com o turismo" pode ser um novo controle de qualidade”.

Ou seja: Pondé está sugerindo às operadoras que forneçam pacotes para que viajantes inteligentes como ele possam fazer viagens inteligentes. Ocorre que pacote é pacote. Qualquer pacote é turismo de massa. Quando afirma que nada há a fazer contra estas “meras seqüelas da democracia do capital”, está de novo apostando na ignorância de seus leitores. Os pacotes existem. Mas ninguém é obrigado a comprá-los. Você pode chegar em qualquer agência de turismo e organizar sua viagem. É o que costumo fazer. E sempre acabo complicando a vida de meu agente, ao buscar destinos dos quais ele nunca ouviu falar.

Sai até bem mais barato que o pacote. Neste caso, as operadoras nacionais subcontratam outras operadoras na Europa. Em um pacote, você normalmente paga duas agências. Se ao menos comprasse um pacote diretamente na Europa, pelo menos pagaria uma só. E se não comprar nenhum, não paga nada para operadoras. Ainda mais nestes dias de Internet, em que você pode escolher na telinha o hotel mais conveniente, a passagem mais barata, sem sair de casa. As agências de turismo tendem a se tornar obsoletas. Mas nem tanto. Elas têm descontos especiais em hotéis que você só consegue por intermédio da agência. Isso não significa que você precise comprar um pacote. Pode muito bem conversar com seu agente e fazer um roteiro individual.

Há momentos, no entanto, em que não dá para escapar do pacote. É o caso de viagens a regiões inóspitas ou países do Oriente. Não há como viajar sozinho ao Saara. Quer dizer, até que há. Mas você vai pagar o preço de uma excursão. Além disso, não tem graça alguma viajar sozinho pelo deserto. Com quem você vai conversar, além do dromedário?

Da mesma forma, se eu fosse à China, eu compraria um pacote. Impossível orientar-se em uma cidade chinesa sem conhecer o chinês. Pelo que sei, as ruas não estão sinalizadas em língua de gente. E esta é uma das razões – entre outras – pelas quais jamais irei à China. Mas já fui sozinho à Rússia e consegui destrinchar o cirílico.

É muito fácil condenar sumariamente a indústria do turismo. Ocorre que, sem os circuitos turísticos – e não estou falando de pacotes – você não poderia visitar boa parte do planetinha. É a rede turística que fornece hotéis, restauração, transporte. Ninguém vai pretender percorrer os fjordes noruegueses remando uma canoa, acampando na montanha e pescando na neve para comer. Você tampouco vai fretar um dromedário para sair deserto afora. Mesmo Paris ou Madri. Estas cidades não teriam a oferta de restaurantes, hotéis e lazer que têm, sem a demanda turística. Aquela massa informe de milhões de turistas nas ruas, que tanto nos irrita, é o que garante a existência daqueles milhares de cafés e restaurantes que tanto nos atraem.

Quanto às cidades do Ocidente, todas estão preparadas para recebê-lo, mesmo se você não fala a língua local. Todas fornecem mapas já no aeroporto, e os mapas não estão em ideogramas. Pacotes, a meu ver, só têm sentido para velhos e handicapés, pessoas que já não conseguem carregar malas. E o contingente da terceira idade está viajando cada vez mais. Tem gente, no entanto, que só consegue viajar em rebanho. Que viajem então em rebanho. Mas ninguém é obrigado a isto, como pretende o articulista.

Há mais de trinta anos, escrevi uma solene bobagem, um artigo publicado na Zero Hora, de Porto Alegre, intitulado “O Direito a Paris”. Nele, defendia que este direito deveria constar de qualquer declaração de direitos humanos. Fez sucesso, meu artigo. Fui tido como lúcido, generoso, humanista. Todo jovem, inevitavelmente, em algum momento escreve alguma besteira.

Quando vejo a atual horda de bárbaros invadindo Paris – e não falo apenas dos turistas, mas particularmente dos imigrantes árabes e africanos – sinto vergonha de meu artigo. Só tem direito a Paris, penso hoje, quem consegue entender a cidade. Essa gente que chega lá procurando o Mercado Comum Europeu – “me falaram que lá é mais barato” – deveria ser barrada no aeroporto.