¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, fevereiro 21, 2010
 
ATLETA ENTRA EM CLÍNICA
PARA CURAR-SE DO GOSTO
PELO MELHOR DA VIDA



O golfista americano Tiger Woods declarou ontem aos jornais que está "profundamente entristecido" por sua "irresponsabilidade e comportamento egoísta". Acrescentou que voltará a jogar golfe, mas que ainda não sabe quando isso vai acontecer. Muito abatido, o atleta pediu desculpas à sua mulher, Elin Nordegren, e aos fãs por ter sido infiel em seu matrimônio e ter maculado a sua imagem perante todo o mundo. Anunciou ainda que voltará para a clínica na qual está realizando tratamento intensivo contra a sua compulsão por sexo. "O que fiz foi inaceitável e eu sou a única pessoa que pode ser culpada", insistiu.

Essa agora! Em pleno século XXI, um homem se penitenciando por ter tido relações com outras mulheres que não a sua e buscando tratamento por gostar de sexo. Como se o gosto pelo bom esporte fosse doença. Parece que ninguém lembra mais de Bill Clinton, que usava uma estagiária para felações rápidas, sem sequer pagá-la do próprio bolso. De John Kennedy, que usufruía dos serviços de uma prostitutinha de Hollywood, Marilyn Monroe. Sem falar das dezenas, talvez centenas, de outras mulheres que teve.

Antes de enfrentar Richard Nixon, em seu primeiro debate na televisão, Kennedy contratou uma garota para uma relação rápida. Saiu-se tão bem na TV que nunca mais dissociou os dois atos. Em todos os debates que se seguiram, a tática política foi a mesma: uma call girl antes e, no lugar do cigarro, Richard Nixon. Consta ainda que, ao receber um dignitário estrangeiro, Kennedy ordenou a seu staff que o entretivesse, enquanto se entregava ao bom folguedo com sua mulher.

Mais ainda: parece que ninguém lembra mais do santo homem Martin Luther King, que além de plagiador de textos alheios – a tese que lhe rendeu o título de Doutor foi denunciada como plágio – usava o dinheiro de suas campanhas em favor da igualdade racial para orgias com profissionais do sexo.

Os Estados Unidos estão mudando. Em março de 2008, o governador de Nova York, Eliot Spitzer, renunciou ao cargo por ter sido flagrado freqüentando prostitutas. Como Tiger Woods, se penitenciou publicamente, ao lado de sua mulher: “Eu renuncio ao cargo de governador. Durante minha vida pública, sempre defendi que todos, seja qual for a função que desempenhem, assumam a responsabilidade por sua conduta. Eu mantenho a crença de que, como seres humanos, nossa maior glória não consiste em nunca cairmos, mas sim em nos levantarmos novamente a cada queda".

Woods ou Spitzer são hoje demonizados. Luther King recebeu o Nobel da paz e até hoje permanece envolto em uma aura de santidade. Spitzer foi acusado de usar dinheiro de campanha para pagar sexo. Nisto, a meu ver, reside a indecência de sua atitude. Não em seu gosto por profissionais. Se as pagasse com dinheiro do próprio bolso, ninguém nada teria a ver com isso. Mas tanto Kennedy quanto Clinton se valiam de seus cargos, pagos com dinheiro público. E as orgias de Luther King também foram pagas com dinheiro público. Se assim foi, não vejo porque pegar no pé de Spitzer. Sua mulher, ao que tudo indica, aceitava os pulos de cerca do marido. Como Hillary aceitou tranqüilamente os de Clinton.

Mas o golfista? Não consta que tenha pago suas mulheres com dinheiro público. Vivemos em uma época em que a monogamia não mais vige. Aliás, nunca vigeu. Se o casal está de acordo, tudo bem. Ninguém tem nada a ver com isso. Se uma das partes não aceita a infidelidade do parceiro, para isso existe o divórcio. O que não consigo entender é procurar uma clínica para livrar-se do “vício” de gostar do bem-bom.

Em algum jornal, em algum momento, li entrevista com três psicoterapeutas que definiam pessoas com uma sexualidade mais exigente como tarados, pervertidos, ninfomaníacos ou depravados. Ser entusiasta do bom esporte passa a constituir algum tipo de patologia do sexo. “Mais conhecida como compulsão sexual, esse transtorno atinge homens e mulheres, sem distinção de idade”. Segundo a sexóloga Maria Cláudia Lordello, o desejo sexual hiperativo acaba resultando em uma inquietude da pessoa. "Isso a impede de fazer outras coisas importantes da vida. Tarefas cotidianas como trabalho, estudo e vida familiar acabam ficando comprometidas, pois ela deixa de realizá-las para fantasiar ou mesmo para vivenciar esses desejos". Ora, a história nos mostra que o tal de desejo sexual hiperativo não perturba necessariamente o trabalho.

Muito já escrevi sobre Giacomo Casanova di Seingalt (1725 - 1798), que passou sua vida correndo atrás de saias, de Veneza a Paris, de Lisboa a Moscou, naqueles dias em que o meio de transporte mais confortável era uma carruagem puxada a cavalos. O outro era apenas o cavalo. Ao longo de sua vida, teria recebido as homenagens de cerca de duas mil mulheres. Quem for procurar o verbete na Internet, vai encontrar referência a 122 ou 123 mulheres. Isso é bobagem, cifra de qualquer moleque contemporâneo.

Aos sessenta anos, Casanova começa a escritura de suas memórias. “Agora que não posso mais viver, sento e escrevo sobre o que vivi”. Sem jamais ter pretendido fazer literatura, Casanova entra na História da Literatura, em função de sua vida aventureira. Freqüentou cortes e bordéis, prisão e caserna, clero e políticos, conventos e salões literários. Quem quiser se debruçar sobre o século XVIII - seja historiador, seja sociólogo, seja mero curioso - terá em Casanova um excelente guia. Em momento algum faz penitência de seu passado. “Cultivar o prazer dos sentidos foi sempre minha principal preocupação; nunca encontrei outra coisa mais importante. Sentindo-me nascido para o belo sexo, sempre o amei e por ele me fiz amar quanto pude. Apreciei também os bons manjares com transporte, e sempre me apaixonaram todos os objetos capazes de me excitar a curiosidade”.

Teve vida intelectual intensa. Além de suas memórias, que somam dez volumes, traduziu a Ilíada para o italiano. Matemático, escreveu um tratado sobre a duplicação do hexaedro. Paradoxalmente, escreveu também um tratado do pudor e começou a redigir um dicionário de queijos. Escreveu também uma novela utópica, Icosameron. As mulheres, para Casanova, constituíam um estímulo para a produção intelectual. Não fossem elas, teria terminado seus dias como ilustre desconhecido.

Sem precisar ir tão longe no passado, Georges Simenon. Nos anos 80, li uma entrevista concedida pelo escritor belga ao cineasta Federico Fellini, na revista Nouvel Observateur, onde ele admitia ter tido cerca de dez mil mulheres. Isso sem deixar de atender – e como - sua mulher, Denyse Ouimet, que declara: “Nós fazíamos amor todos os dias, antes do café, depois da siesta e antes de dormir”. Consta que atendia ainda a cozinheira.

Este desejo sexual hiperativo – no jargão dos psicoterapeutas - não o impediu de escrever, entre 1920 e 1972, os 431 títulos que lhe são atribuídos, entre livros publicados com o próprio nome e com pseudônimos. Isso sem falar em suas viagens por todos os quadrantes do planetinha. Consta que, em sua melhor forma, Simenon podia trabalhar onze horas corridas em sua máquina de escrever, produzindo 80 páginas por dia. Sem renunciar às “rapidinhas”.

Mas parece que o arrependimento público de Tiger Woods não é exatamente arrependimento. E sim preocupação com seus patrocinadores que – em nome de uma moral hipócrita – ameaçam retirar-lhe o financiamento que o tornou o atleta mais bem pago do mundo.

Bom, aí a situação se torna mais compreensível.

PS - Mal acabo de escrever esta crônica, leio nos jornais que as 3.700 páginas da Histoire de ma Vie, de Casanova, foram descobertas dentro de uma dezena de caixas que haviam sido movidas para uma caixa-forte antes de os Aliados bombardearem a Alemanha em 1945. A Biblioteca Nacional da França pagou 7 milhões de euros pelos manuscritos.