¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, fevereiro 21, 2010
 
DOSTOIEVSKI, LIDO
POR DONA DILMA



Depois de um presidente analfabeto, a imprensa parece estar tentando criar um perfil erudito para a candidata à Presidência da República. Na Folha de São Paulo de hoje, Fernando Rodrigues cita declaração de um dos dois maridos de Dona Dilma, Claudio Galeno Linhares: “Ela teve uma formação intelectual precoce. Lia muito, de histórias em quadrinhos até Marcel Proust e Jean-Paul Sartre”.

Mais adiante, é o próprio repórter que afirma: “É raro Dilma tratar de temas mais filosóficos e não inserir uma citação literária. Sobre religião, por exemplo, fala dos romances de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), permeados do conceito de que, "se Deus não existe, tudo é permitido".

É possível que a ex-terrorista tenha lido Proust ou Sartre. Mas dificilmente terá lido Dostoievski. Esta frase, atribuída ao escritor russo, é mais uma daquelas bobagens recorrentes – semelhante àquela outra, de que Guernica, de Picasso, tem algo a ver com o suposto bombardeio da cidade basca – que são repetidas ad nauseam por jornalistas. Dona Dilma, na verdade, ouviu o galo cantar, mas não sabe onde.

Os católicos ocidentais adoram empunhar esta deturpação do pensamento do escritor católico ortodoxo. Querem colocar Deus como fundamento de toda ética, como se não pudesse existir ética sem a crença em Deus. Esta frase estaria em Os Irmãos Karamazov. Ora, Dostoievski jamais escreveu isto. Foi Sartre quem disse que ele havia escrito. Quem menciona esta frase são geralmente pessoas que nunca leram Dostoievski e o citam de ouvir falar. Há algum tempo atrás, me dei ao trabalho de reler Os Irmãos Karamazov para ver se Dostoievski havia realmente escrito tal bobagem. Não encontrei. O mais próximo que existe é isto:

- Ivan Fiodorovitch ajuntou entre parênteses que lá está toda a lei natural, de maneira que se você destrói no homem a fé na sua imortalidade, não somente o amor nele perecerá, mas também a força de continuar a vida no mundo. Mais ainda, não existiria nada mais que fosse imoral; tudo será autorizado, mesmo a antropofagia. E não é tudo: ele acaba afirmando que para todo indivíduo que não crê em Deus nem em sua própria imortalidade, a lei moral da natureza deveria imediamente tornar-se o inverso absoluto da precedente lei religiosa; que o egoísmo, mesmo levado ao crime, deveria não somente ser autorizado, mas reconhecido como uma solução necessária, a mais razoável e quase a mais nobre. Após um tal paradoxo, julgai, senhores, julgai o que nosso caro e excêntrico Ivan Fiodorovitch julga bom proclamar e suas eventuais intenções.

Mais adiante, Mitia se pergunta:

- Mas então, que se tornaria o homem, sem Deus e a imortalidade? Tudo é permitido e, conseqüentemente, tudo é lícito? (...) Que fazer, se Deus não existe, se Rakitine tem razão ao pretender que é uma idéia forjada pela humanidade? Neste caso, o homem seria o rei da terra, do universo. Muito bem! Mas como ele seria virtuoso sem Deus?

Ou seja, a pergunta não é exatamente sobre Deus, mas sobre Deus e a imortalidade. Imortalidade significa punições e recompensas. Os teístas querem ver nos personagens de Dostoievski a impossíbilidade de uma ética sem Deus. No entanto, o que o autor empunha é a promessa de céu... ou de inferno. O fundamento de sua moral - ou da de Ivan Karamazov, como quisermos - não é exatamente Deus, mas a esperança ou o medo.

Isto é um indício de que a guerrilheira tenha lido Sartre. Era escritor bastante popular entre as esquerdas nos anos 60. Mas parece ter passado longe de Dostoievski. Conhece-o de oitiva. Ou não diria tal bobagem.