¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, março 29, 2010
 
CINEASTA CRIA SANTO


Aconteceu um mês após a morte de minha mulher. Estava reunido com amigos comuns, quando uma moça me noticiou:
- Falei ontem com a Tania.
Era uma espírita. E o que ela disse? – perguntei.
- Ela disse: seja feliz!
Me soou estranho aquele seja. Minha mulher era gaúcha e jamais falaria assim. Mas quem sou eu para duvidar? Se a moça disse que falou com ela, é porque havia falado. Perguntei se não podia falar de novo.
- Posso.
- Então tá. Por favor, pede pra ela o código do celular, que ela esqueceu de me passar antes de morrer.
A moça desconversou, emudeceu de repente e dentro de uns dez minutos pegou o filho e saiu da sala, sem se despedir de ninguém. Seja feliz é fácil. Código do celular é mais complicado.

Depois do fracasso de Lula, o filho do Brasil, que tenta vender como herói o personagem-título, será lançado na próxima sexta-feira Chico Xavier, filme de Daniel Filho. “Um santo, mas também era um homem", no dizer do diretor. O Brasil vive em eterna carência de heróis e santos. Se o herói não colou, tenta-se o santo. Daniel Filho espera um milhão e meio de espectadores.

Chico Xavier, o médium mineiro, é um seguidor de Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido como Allan Kardec (1804 – 1869), que misturou evangelhos com a teoria do magnetismo animal do austríaco Franz Anton Mesmer, com mais algumas pitadas de budismo, no caso, a reencarnação. Mesmer era médico, estudava teologia e instituiu como terapia a picaretagem da imposição das mãos. Criação nada original, afinal já está nos Evangelhos. (Se voltarmos um pouco atrás, encontraremos a prática no Egito, no templo da deusa Isis, onde multidões buscavam o alívio dos sofrimentos junto aos sacerdotes, que lhes aplicavam a imposição das mãos). Curiosamente, Kardec, que é francês e está sepultado no Père Lachaise, em Paris, é praticamente desconhecido em seu país. Sua tumba está sempre cheia de flores, colocadas geralmente por brasileiros. Pergunte a um francês médio quem é Kardec. Ele não saberá responder.

Na França, a nova religião não vingou. Exportada para o Terceiro Mundo, adaptou-se muito bem no Brasil – maior nação espírita do mundo – e nas Filipinas. Havia no país uma certa elite que queria desvincular-se do catolicismo de Roma, mas não queria associar-se às religiões animistas africanas. A ficção criada por Kardec, cidadão francês, mais as teorias supostamente científicas do austríaco Mesmer, vinham a calhar. Assim se implanta no Brasil a nova crença.

Entre nós, o espiritismo fundiu-se à umbanda, em um estranho caldo que mistura crenças animistas com uma doutrina de origem francesa, salpicada por teorias de um médico austríaco. Já falei da origem desta fusão, que merece ser relembrada.

Segundo J. Alves Oliveira, em Umbanda Cristã e Brasileira, no dia 15 de novembro de 1908, o Caboclo das Sete Encruzilhadas se manifestou numa sessão espírita kardecista em Neves, São Gonçalo, município fluminense próximo ao Rio, então capital federal.

“Foi um escândalo" – escreve Matinas Suzuki, na Folha de São Paulo -. “Embora haja indícios de incorporações de espíritos de índios e de escravos negros nas diversas formas de macumba que existiam no Rio de Janeiro do século 19, os kardecistas não os admitiam por considerá-los espíritos marginais e pouco evoluídos. Quem recebeu o caboclo indesejado, e logo em seguida o preto-velho Pai Antônio, foi Zélio Fernandino de Moraes, um rapaz de 17 anos que se preparava para entrar para a Escola Naval”.

O achado do Zélio Fernandino parece ter vindo de encontro a alguma inconsciente aspiração brasílica e fez escola. Assim como os católicos se apossaram do livro judaico, os umbandistas reivindicaram para si o mediunismo, trouvaille de Allan Kardec. Segundo Alves Oliveira, o caboclo teria assim se revelado: "Se julgam atrasados esses espíritos dos pretos e dos índios [caboclos], devo dizer que amanhã estarei em casa deste aparelho [o médium Zélio de Moraes] para dar início a um culto em que esses pretos e esses índios poderão dar a sua mensagem e, assim, cumprir a missão que o plano espiritual lhes confiou".

O espiritismo então abrasileirou-se, para desalento de seus mentores europeus. E gerou este misto de escroque e místico, Chico Xavier, que agora será vendido como santo nas telas do país.