¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, março 06, 2010
 
PLÁGIO, UMA PRÓSPERA
INDÚSTRIA NACIONAL



Em janeiro de 2008, da tradutora Denise Bottman, recebi esta denúncia de uma verdadeira indústria do plágio:

Talvez o sr. tenha tomado conhecimento pela imprensa de um certo início de movimentação entre tradutores contra a apropriação indébita de traduções muito consagradas, feitas por grandes intelectuais brasileiros e portugueses, de grandes obras da literatura universal. Um levantamento inicial mostra que mais ou menos 30 obras da grande literatura universal, que haviam sido publicadas na coleção da Abril Cultural, foram reeditadas pela editora Nova Cultural com a substituição dos nomes dos tradutores originais, aparecendo em lugar deles ou nomes de fantasia ou nomes de gente de carne e osso. Essa quantidade de obras corresponde a mais de 65% dos títulos traduzidos da coleção "obras-primas" da editora Nova Cultural, e portanto parece indicar que não se trata de casos isolados, e sim de uma prática deliberada e sistemática adotada pela referida editora.

O que parece se configurar, portanto, é que a editora de maior visibilidade no país (que muitas pessoas ainda associam à Editora Abril e à extinta Abril Cultural) tomou para si um patrimônio tradutório do país (pois nossa formação cultural, num país que depende tremendamente do acervo de obras traduzidas para o português, se constrói também e maciçamente sobre essa atividade - basta ver o caso de suas traduções de T. S. Eliot, que tantas gerações influenciou e continua a influenciar no Brasil!) e, por razões ignoradas, mas com certeza escusas e que não vêm agora ao caso, eliminou, suprimiu, enterrou e está contribuindo ativamente para o esquecimento da contribuição desses intelectuais da primeira metade do século passado à constituição de um acervo das grandes obras mundiais em tradução para o português. Assim temos que Oscar Mendes, Octávio Mendes Cajado, Mário Quintana, Lígia Junqueira, Hernâni Donato (este ainda entre nós), Sílvio Meira, Brenno Silveira, foram eliminados, suprimidos, tirados fora, aniquilados, exterminados, dos créditos de tradução.

Pelo andar da carruagem, dentro em breve Rachel de Queiroz, Carlos Drummond, Cecília Meirelles, Manoel Bandeira também serão banidos dos créditos das traduções... mesmo que isso não ocorra, de qualquer forma o sumiço já perpetrado é mais do que suficiente para despertar uma imensa indignação entre quem preza a parca tradição cultural deste país, construída tão a duras penas. (...) Por isso dirigimo-nos ao sr., para pedir apoio a esse protesto.

Atenciosamente,
Denise Bottman


Recebo hoje novas da Denise, através de um bom amigo de Florianópolis. Reportagem de Nahima Maciel, publicada originalmente no Correio Braziliense e replicada no Diário Catarinense, edição deste sábado, nos conta que a tradutora está sendo processada pela editora Landmark, que entrou com pedido na 4ª Vara Cível de São Paulo para retirar o blog do ar:

Palavras replicadas
TRADUTORA É PROCESSADA POR EDITORA AO CRIAR
BLOG PARA DENUNCIAR CASOS DE PLÁGIO NO BRASIL


Em junho do ano passado, a tradutora Denise Bottman constatou, perplexa, o plágio de traduções praticado sem pudores por algumas editoras brasileiras. Uma denúncia em jornal paulistano citava pelo menos duas empresas – Martin Claret e Nova Cultural – como verdadeiras fábricas de desova de traduções adulteradas nas livrarias do país.

Desde então, Denise empreendeu uma extensa pesquisa e já chegou a 14 editoras que praticam plágio e atuam no mercado editorial sem grandes impedimentos. A pesquisa gerou o blog www.naogostodeplagio.blogspot.com, no qual Denise lista títulos com traduções plagiadas e as editoras responsáveis por sua publicação. O site incomodou tanto que a Landmark, uma das citadas no blog, processou a pesquisadora e entrou com pedido na 4ª Vara Cível de São Paulo para tirar o blog do ar. O pedido, no entanto, não foi atendido pelo juiz responsável pelo caso. “A Editora Landmark propôs a ação competente em face da blogueira Denise Bottman por entender que as denúncias por ela apresentadas encontram-se totalmente desgarradas da realidade fática, razão pela qual não existe qualquer cabimento quanto à acusação de plágio. Acrescenta-se que a existência ou não de plágio, por se tratar de crime, somente pode ser reconhecido na esfera judicial”, diz Alberto J. Marchi Macedo, advogado da Landmark. No blog, a tradutora apresenta provas de plágio na tradução de Persuasão (Jane Austen) e O Morro dos Ventos Uivantes (Emily Brontë), publicadas pela Landmark em 2007.


Essa agora! Uma editora, cujo acervo se nutre de plágios, quer censurar uma tradutora que denuncia seus plágios. Pelo jeito, a cultura do plágio está tão arraigada no Brasil, que editores já consideram o plágio um direito adquirido.

A pesquisa de Denise - continua a reportagem - é motivada por uma prática realizada há anos, sorrateiramente, no mercado editorial brasileiro e raramente questionada ou impedida. “Isso é um saque ao patrimônio literário. Bem ou mal, o Brasil é um país que até hoje depende muito de tradução na área do conhecimento e da literatura. A grande abertura do país para o mundo foi no começo do século 20, quando Monteiro Lobato e Francisco Alves começaram a traduzir as coisas. Quem traduzia na época era Rachel de Queiroz, Manuel Bandeira”, conta Denise. E são essas traduções mais antigas as preferidas dos plágios.

O método é sempre o mesmo. Mantém-se a estrutura da tradução e muda-se uma ou outra palavra antes que o texto seja publicado sob pseudônimo ou assinado por um tradutor desconhecido. No ano passado, o plágio praticado pela editora Martin Claret virou caso policial depois que o Ministério Público Estadual de São Paulo pediu para a polícia instaurar inquérito para investigar o crime. A Lei nº 9.610 confere direitos autorais ao tradutor e, segundo o Código Penal, o crime prevê de três meses a quatro anos de prisão. O inquérito da Martin Claret foi arquivado e os livros continuam nas livrarias. Entre as obras plagiadas estão uma tradução de O Lobo e o Mar (Jack London), feita por Monteiro Lobato em 1934 e assinada por um certo Pietro Nassetti, e uma versão de Orgulho e Preconceito (Jane Austen), vertida para o português por Maria Francisca Ferreira de Lima e atribuída pela Martin Claret a Jean Melville. Advogada da editora e única a falar sobre o caso, Maria Luiza Egea diz que a empresa está trabalhando em mudanças no catálogo. “A editora contratou novos tradutores para alguns títulos que havia publicado, para atender a interesses comerciais”, garante.


E por aí vai. O blog de Denise Bottman lista nada menos que 115 títulos plagiados. Segundo a tradutora, além da Martin Claret, Nova Cultural, Hemus e Ediouro, há uma lista que inclui a Rideel, Cedic, Best-Seller e outras. De onde concluímos que boa parte do acervo literário nacional provém da indústria do plágio. Mas, como escrevi à tradutora na ocasião, o buraco ainda é mais embaixo.

Seria interessante também pesquisarmos a fundo essa prática inominável para sabermos quais são as qualificações de Rachel de Queiroz em sueco, para traduzir Verner von Heidenstam, ou em russo para traduzir Dostoievski. (Salvo prova em contrário, o primeiro tradutor no Brasil a traduzir diretamente do sueco foi este que vos escreve). Onde Drummond de Andrade estudou norueguês para traduzir Knut Hamsun? Desde quando Cecília Meirelles conhecia suficientemente bengali para traduzir Rabindranath Tagore? Onde Manoel Bandeira estudou persa para traduzir Omar Khayyam?

E, cá entre nós, apesar de meu profundo apreço pelo Mário Quintana: teria o poeta da Rua da Praia inglês suficiente para traduzir Lord Jim, de Conrad? Ou francês suficiente para traduzir Proust? Esta pergunta se justifica já a partir de como Quintana traduziu o título do segundo tomo de À la Recherche du temps perdu, no caso, À l'Ombre des jeunes filles en fleurs. Quintana traduziu por À Sombra das Raparigas em Flor. Rapariga pode designar jovem, moça virgem. Mas no Brasil sempre teve uma acepção pejorativa. Já no português de Portugal, essa conotação inexiste. Aparentemente, o poeta andou cotejando alguma edição portuguesa de Proust.

Ora, não vejo maiores diferenças em plagiar de uma tradução portuguesa e plagiar de uma tradução do russo ou sueco ao francês ou inglês. Bottman está fazendo um trabalho admirável ao denunciar esta próspera indústria que se nutre do roubo do trabalho intelectual alheio. Não é de espantar que os prósperos executivos da indústria do plágio queiram silenciá-la.

Mas, se a tradutora mergulhar mais fundo neste mar de plágios, verá que nem a elite literária do país escapa do crime.