¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, março 17, 2010
 
SÓ O QUE GRITA É PECADO


Não bastasse esse brilhante latinório puxado do fundo do baú, os delicta graviora, monsenhor Charles Scicluna encontrou outra palavrinha para minimizar as acusações de pedofilia feitas aos ministros da Santa Madre. "Cerca de 60% dos casos, tratam-se de atos de efebofilia, isto é, atração física por adolescentes do mesmo sexo. Em 30%, relações heterossexuais e para os 10% restantes, verdadeira pedofilia". Monsenhor parece balizar a gravidade dos delicta graviora por faixa etária. Como se fosse mais ou menos criminoso violar uma criança ou um adolescente. O complacente monsenhor ainda afirma que, em nove anos, os casos do padres acusados de pedofilia são então cerca de 300, sobre "400 mil padres diocesanos e religiosos no mundo. Certo, mas é preciso constatar que o fenômeno não é tão expandido como se pretende fazer crer".

Não é bem o que nos conta a imprensa. A Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana está gastando bilhões de dólares com indenizações às famílias das vítimas. Só em 2008, a Igreja Católica dos Estados Unidos gastou US$ 430 milhões com indenizações por abuso sexual cometido por padres.

Vítimas de abuso sexual cometido por padres em Los Angeles receberam mais de US$ 1,5 bilhão — mais do que qualquer outra diocese dos Estados Unidos já pagou em indenizações. A Arquidiocese de Portland, no Oregon, decretou falência, tornando-se a primeira diocese da Igreja Católica americana a tomar esta medida por causa das acusações de abuso sexual. O pedido de falência teve a intenção de paralisar uma ação de abuso cometido por um padre que estava sendo julgada em Portland. A ação envolvia Maurice Grammond, acusado de molestar mais de 50 garotos na década de 1980. Autores de duas ações envolvendo Grammond pediram uma indenização de mais de US$ 160 milhões.

Isso sem falar nas indenizações que foram negociadas na Irlanda, Alemanha e Áustria. As bolas da vez, agora, são a Suíça – com cerca de sessenta acusações de abusos sexuais – e a Itália, onde está a raiz da infâmia.

Mas que ninguém se surpreenda com estes fatos. Constituem velha tradição da Santa Madre. No século XVII, na mesma Regensburg (Ratisbona) em que o irmão de Sua Santidade regia um coral de meninos submetidos a abusos sexuais, dizia o missionário franciscano Bertoldo: “É bastante freqüente que os bispos tenham filhos, muitos ou poucos”. Um tal de Enrique, bispo de Basiléia, deixou em sua morte vinte rebentos. O bispo de Lüttlich – que, a bem da verdade, acabou sendo destituído – deixou sessenta e um. Cifra de enrubescer o bispo presidente do Paraguai.

As amantes de religiosos chegaram a entrar para a história das artes. Káthe Stolzenfels e Ernestine Mehandel, concubinas do cardeal Alberto II, de Mannheim (Mogúncia, em português) foram imortalizadas por Durero, como as filhas de Lot. Káthe foi ainda homenageada por Grünewald, ao ser retratada como “Santa Catarina no matrimônio místico”. E Lukas Cranach pintou Ernestine como Santa Úrsula e o próprio cardeal como São Martim.

Verdade que alguns padres foram punidos por seus excessos. Mas nem tudo é pecado na Igreja. Alexandre II ensina a seus sacerdotes em 1065: não tratamos nada além dos casos conhecidos e notórios. O que acontece em segredo só Deus sabe, e é ele quem tem de considerá-lo. Ou, como dizia um certo Panizza: o que acontece em segredo não aconteceu. Só o que grita é pecado.

Estes dados, eu os extraio de Das Kreuz mit der Kirche – Eine Sexualgeschichte des Christentums, de Karlheinz Deschner. (Estou lendo a tradução espanhola, Historia Sexual del Cristianismo). São 480 páginas descrevendo a lubricidade de papas, bispos e padres durante os séculos de existência da Igreja Católica. Claro que não posso reproduzi-las, fica a recomendação de leitura. Mas não me furtarei a alguns tópicos.

“A maioria dos religiosos de certa hierarquia – continua Deschner – se sentiam comprometidos. Certo bispo de Fiesole do século XI vivia rodeado de uma tropa de concubinas e filhos. O bispo Iuhell de Dol contraiu matrimônio publicamente e dotou suas filhas com os bens eclesiásticos. Durante o papado de Inocêncio III (1198 – 1216), o arcebispo de Besançon, cujas extorsões haviam levado o clero de sua diocese à mais extrema pobreza, manteve uma relação com uma parente consanguínea, a abadessa de Reaumair-Mont e deixou grávida uma monja, além de deitar-se com a filha de um religioso, como era público e notório. Pela mesma época, costumava celebrar suas orgias o arcebispo de Bordéus, um personagem que se dedicava a saquear todas as igrejas, monastérios e vivendas privadas dos arredores com uma banda de ladrões.

“No século XIII, o papa Inocêncio III diz que os sacerdotes são mais imorais que os leigos; Honório III assegura que estão corrompidos e conduzem os povos à perdição; Alexandre IV afirma que as gentes, em lugar de serem corrigidas pelos religiosos, são completamente corrompidas por eles. Os clérigos apodrecem como gado no esterco, outra preciosa sentença papal do século XIII. A meados do mesmo século, o dominicano e mais tarde cardeal Hugo de Saint Cher diria na conclusão do Concílio de Lyon, em 1251: amigos meus, fomos de grande proveito para esta cidade. Quando chegamos, só encontramos três ou quatro prostíbulos; no momento da partida, só deixamos um. Mas este abarca de um extremo ao outro da cidade”.

Isto é só uma diminuta mostragem. Como disse, o livro de Deschner se estende por 480 páginas, cada uma repleta de abusos e desmandos por parte da hierarquia católica. Com o tempo e com a exigência mais severa de celibato, os padres se resguardaram de seus assaltos às mulheres. E se dedicaram à parte mais indefesa do rebanho, as criancinhas.

Nada de novo sob o sol. O que estamos vendo, nas atuais denúncias de pedofilia nos jornais, é apenas a parte emersa do iceberg. Só o que grita é pecado.