¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, março 24, 2010
 
UMA DAS MAIS LUCRATIVAS
CORRUPÇÕES NACIONAIS



Pois, meu caro Tamas, as leituras obrigatórias constituem a praga maior do ensino nacional. Primeiro, porque obrigatórias. A nenhum estudante deve-se impor livros de leitura obrigatória. Tenho um grande aliado nesta minha postura, Jorge Luís Borges. Para o autor argentino, ninguém deveria ser obrigado a ler nada. Como algo se há de ler, eu sugeriria uma lista bem ampla, na qual o aluno escolhesse o que mais lhe agradasse. Deixando ainda aberta a possibilidade de o aluno também sugerir leituras. Foi o que fiz em meus dias de magistério. Claro que não aceitaria um Paulo Coelho como sugestão.

A praga tem outros desdobramentos. A leitura imposta será geralmente de um autor nacional. Toda aquela grande – e eterna – literatura que foi feita antes de que Brasil fosse Brasil fica de fora. Certa vez, passeando com uma sobrinha por Madri, levei-a até a Plaza España, para mostrar-lhe aquele monumento clássico do Quixote montado no Rocinante, ladeado por Sancho Pança e seu burrico. Antes de ir adiante, algumas palavrinhas sobre a sobrinha. É moça inteligente e atilada, fez curso de Relações Públicas em Santa Maria e na época já geria muito bem sua vida, com um bom emprego em São Paulo. Para minha perplexidade, me perguntou o que jamais eu pensara ouvir: quem são aqueles dois?

Mas Machado de Assis ela sabia quem era. Ora, o Quixote era meu velho conhecido desde os bancos escolares. Não é que seja uma falha do ensino o desconhecimento de Cervantes. É algo bem mais grave. É um crime de lesa-literatura. Não consigo conceber que alguém saia da universidade sem ter pelo menos uma idéia do Cavaleiro da Triste Figura.

Um outro aspecto da praga é o espírito corporativo dos escrevinhadores nacionais. Vivemos em uma cultura de compadrismo. Nenhum autor será incluído nas leituras obrigatórias se não tiver as costas quentes junto ao MinC ou às universidades. Sem beijar a mão de um padrinho, nada feito. A leitura obrigatória se torna um coto de caça reservado, muitas vezes transmitido de pai pra filho. Vide os Verissimos. Primeiro, o pai era leitura obrigatória. Agora é o filho. E se o filho do filho escrevesse, certamente também participaria da guilda.

Isso sem falar nos compromissos ideológicos. Nenhum autor terá lugar junto aos amigos do rei se não tiver um dia feito um aceno a Machado. Se você um dia tiver escrito que o Machadinho é um escritor de segunda categoria, tire o cavalinho da chuva. Terá também de fazer um gesto qualquer de repúdio ao regime militar que, em 64, salvou o país de ser uma imensa e paupérrima Cuba. E atenção: se tiver um dia sussurrado uma palavrinha qualquer contra a ditadura cubana, considere-se leproso. Conveniente também jamais ter criticado a ditadura soviética. Tampouco use essa palavrinha inconveniente, mensalão. Fica feio para um escritor que pretenda fazer carreira.

Cumpridos estes requisitos, você – escritor que não conseguiria vender seus livros nem mesmo para seus familiares – você terá enormes tiragens, fará boa fortuna e gozará das mordomias que os reis oferecem a seus cortesãos. Ou seja, você fará parte de uma das mais lucrativas corrupções nacionais.

Corrupção que nenhum jornal denuncia.