¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, abril 14, 2010
 
JORNALISTA RECEBE JABÁ E MOSTRA
UMA NORUEGA PARA PANACA VER



Os jornais brasileiros são pródigos em denúncias de corrupção de políticos e empresários. Mas completamente cegos às práticas corruptas de seus jornalistas. O jabá corre escancarado nas redações, especialmente nas páginas de cinema e turismo. Produtoras de filmes, empresas aéreas e agências de turismo brindam com viagens de luxo e hotéis cinco estrelas os profissionais da área para venderem seus peixes. As editorias toleram esta prática obscena como se fosse algo absolutamente normal no exercício do jornalismo. Daí resulta que repórteres ineptos e venais produzem péssimas reportagens, que pouco ou nada dizem sobre a realidade que pretendem mostrar. Quem perde é o leitor.

É o caso de uma série de artigos sobre a Noruega, publicados ontem no suplemento de turismo do Estadão. Um certo Roberto Almeida viajou a Oslo, com jabá da Visit Norway e da KLM. Como paga de suas mordomias, escreveu três páginas que nada dizem do que mais caracteriza o país. Y a las pruebas me remito.

O repórter dedica um artigo a Oslo e outro a Bergen. Tudo bem. Dedica uma sub ao Flamsbana, uma ferrovia na montanha que vai de Myrdal a Flam. Ok! É um percurso espeluznante, como diriam os espanhóis. De arrepiar. Mas o filé da Noruega está mais adiante, na rota dos fjordes. Bergen é apenas a porta de entrada destes braços de mar que cortam as montanhas. As emoções mesmo começam quando se sobe rumo ao norte. Sem falar que não diz uma única palavrinha sobre os dois fenômenos mais fascinantes do país, o sol da meia-noite e as auroras boreais.

Pior ainda, não disse água sobre a Hurtigruten, a espinha dorsal da Noruega, o meio de transporte mais confortável, charmoso e barato para se fazer a costa norueguesa. Ir à Noruega e não navegar pela Hurtigruten é como ir a Roma e não ver o Santo Patrono dos Pedófilos. A Hurtigruten – Rota Expressa, em bom português – tem 14 navios que fazem o litoral norueguês de sul a norte, de Bergen até Kirkenes, na fronteira com a Rússia. Outros barcos da companhia fazem trajetos pela Antártica, Spitsbergen, Groenlândia e Europa.

Embora anunciados como navios de cruzeiro por certas agências, são basicamente uma linha costeira, que acaba sendo o meio mais prático de transporte no país. Mas se você quiser encará-los como cruzeiros, nada obsta. É certamente a viagem mais linda do mundo. Você vai entrando e saindo dos fjordes e atracando naqueles portos adoráveis do litoral norueguês, com seus casarios coloridos encarapitados na montanha. Os navios sobem ao norte fazendo escala em determinadas cidades. E voltam ao sul atracando em outras. Você pode pegar um barco em um porto e descer no seguinte. Ou onde quiser.

Em onze dias, o tempo de ir de Bergen até Kirkenes e voltar a Bergen, você conhece praticamente o país todo, já que a maior parte de suas cidades está no litoral. Pode também, se quiser, sair do navio, continuar a viagem pelas montanhas – o que dá uma outra visão dos fjordes – e pegar de novo o navio em um porto mais adiante.

A beleza mesmo da Noruega reside lá. Nos portos de Ålesund, Trondheim, Rørvik, Bodø, Svolvær, Harstad, Tromsø. No arquipélago de Lofoten e nos pequenos fjordes mais ao norte. Um deles, de apenas dois quilômetros de extensão, o Trollfjorden, entre Svolvær e Stokmarknes, na região de Lofoten, é certamente o mais imponente de todos os fjordes. Uma sopa quente de mariscos à meia-noite, em uma temperatura abaixo de zero grau do verão austral, sob aquele sol irreal, foi um dos grandes momentos de minha vida. Vi turistas quase em delírio, não conseguiam decidir para onde assestar as objetivas.

Minha primeira passagem pelo Trollfjorden – troll quer dizer duende – foi no ano 2.000. Eu lia tranqüilamente em um dos salões, quando a Baixinha desceu como que em pânico. “Sobe logo, lá fora está acontecendo algo inimaginável”. Estava mesmo. Nesses momentos, não consigo controlar o que me corre dos olhos.

Oslo é certamente a capital mais anódina da Escandinávia. Não tem o charme de Estocolmo e seu arquipélago, nem a vida borbulhante de Copenhague, muito menos a beleza de Helsinki. Tem o Akker Brygge, um cais e marina de vida esfuziante, é verdade, que lembram a alegria orgíaca de Barcelona ou Dubrovnik. Sim, o repórter nos fala do Akker Brygge. Mas quem vai a Oslo não viu o país. Noruega é muito mais. Ao lado do Chile, eu a considero um dos dois países mais lindos do mundo, do ponto de vista geográfico.

Este muito mais o repórter subsidiado pela Visit Norway e KLM não mostrou. Que deixasse de lado o sol da meia-noite e as auroras boreais até que passa, são fenômenos por demais óbvios. Mas a Hurtigruten não podia ser ignorada. É um grande momento na vida de quem gosta de viajar. Sem falar que é uma das instituições da qual mais se orgulham os noruegueses.

Como não deve ter puxado a carteira para pagar sequer uma cerveja, o repórter deixou de informar ao leitor um dado dos mais importantes para quem vai àqueles nortes. Se fala dos altos preços da bebida, esqueceu – ou talvez nem tenha visto – um detalhe de assustar qualquer turista, os 25% de gorjeta. Um quarto do valor do que se consome à mesa. Dói no bolso. Os Olafs que me desculpem. Mas fiquei nos 10% cá dos trópicos. Nenhum garçom me olhou de cara feia.

Quem gosta de viajar sempre espicha o olho ante um suplemento de viagens. Mas os suplementos nacionais são abomináveis. Os jornalistas propõem um turismo de pacote e geralmente não dão dicas para quem gosta de viajar fora do rebanho. Seguem a política de quem lhes paga as mordomias. Se isto não é corrupção, não sei como se pode chamar.

Se você quer ler um suplemento inteligente sobre viagens, busque El Viajero, o guia de viagens do jornal espanhol El País. Seus articulistas não recebem jabá. Viajam pelo jornal. Oferecem sempre viagens por geografias insólitas, não pelo feijão-com-arroz das agências turísticas. Dão um apanhado geral da história e geografia do país e sugerem roteiros inteligentes.

Já nosso jornalismo de viagens é, antes de tudo, medíocre e venal.