¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, abril 21, 2010
 
OUTRAS ARMADILHAS


Falava eu outro dia dos “mammoni”, os filhos que vivem pendurados nos pais, na Itália. A geração marsupial, que não consegue sair do ventre materno. Os anos vão passando – dizia - e, quando você decide olhar para trás... a vida já passou. Esta não é a única armadilha que a vida oferece. Há outras, e mais perversas.

Uma delas é a bolsa universitária. Você termina a graduação e não vê emprego pela frente. Mas tem algo bem mais a seu alcance, uma bolsa de mestrado. É um salarinho que não lhe exige horários rígidos, nem ponto batido e garante sua subsistência por mais uns quatro anos. Sem falar que você continua gozando daquela alegre vida de campus, onde tudo é eterna juventude e nada tem hora pra acabar. Por mais quatro anos, sua vida está resolvida.

Digamos que você tenha feito um mestrado em Letras, Filosofia, Sociologia, enfim, algo na área “das Humana”, como se dizia em Santa Catarina. Concluída e aprovada a dissertação, você continua na mesma, não vê emprego pela frente. Seu orientador, que vê em você uma pessoa de talento, lhe faz nova proposta. Que tal um doutorado?

Ou seja, mais quatro anos com alguma remuneração, sem horários rígidos, sem ponto batido, mais o gozo da irresponsável – mas divertida – vida de campus. Você embarca. Digamos que tenha levado a bom termo sua tese de doutorado. Uma vez defendida, de novo o vazio pela frente. Você está com trinta e picos de anos, jamais teve carteira profissional assinada, jamais soube o que é receber um salário no fim do mês e já está um pouco fora da idade de entrar no mercado de trabalho.

Conheci não poucas gentes nestas condições em minhas universidades. Uma bolsa aqui, outra acolá, a vida vai passando e quando você olha para trás, não tem vida profissional nenhuma. A França levou esta condição ao extremo com o tal de Doctorat de État. Havia, nos dias que andei por lá, um Doctorat de Troisième Cycle, o doutorado normal, que se cumpria em quatro, no máximo cinco anos. Talvez por ser um país onde você jogava uma pedra em um cachorro e quando errava acertava um doutor, os franceses decidiram qualificar melhor seus universitários. Criaram o Doctorat de État. Qual a diferença entre um e outro?

No de Troisième Cycle, você pesquisava quatro ou cinco anos e redigia uma tese de umas 400 ou 500 páginas. No de État, você pesquisava dez anos e redigia quatro volumes. Quatro volumes que nem a banca lia. Cada jurado lia um volume e olhe lá. O doutorando d’État talvez se sentisse muito honrado com seu status. Até descobrir que, lá pelos 40 anos, permanecera sempre afastado do mercado de trabalho.

A USP, para proteger os seus, nunca aceitou o Doctorat de Troisième Cycle como doutorado. Só aceitava o d’État, que exigia uns dez anos do candidato. Sempre considerei este doutorado como uma perversão universitária, que só servia para afastar acadêmicos do trabalho. Bom, o Mitterrand acabou com o Doctorat d’État. Agora há um único doutorado, tout court.

Tive em minhas mãos uma dessas teses na biblioteca da Sorbonne. Era de uma brasileira, não lembro agora o nome. Quatro volumes sobre a obra de Fernando Pessoa. Ora, por mais genial que seja Pessoa, não é fácil ler quatro volumes do poeta. Imagine então quatro volumes sobre sua obra. Duvido que algum membro do júri tenha lido os quatro. São amontoados de papéis que ninguém lê e ficarão entregue às traças nas bibliotecas da universidade. Teriam mais utilidade para fortalecer diques na Holanda.

A universidade é uma corporação que se sustenta de alunos. Estes não têm garantia alguma de emprego ao sair da academia, particularmente se fizeram cursos de Letras, Filosofia ou cursos do gênero. Mas os professores têm seus bons salários e aposentadoria garantidos.

Quando você entra em um curso de doutorado, lembre-se: você não está necessariamente garantindo seu futuro. Mas o de seu professor.