¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, abril 16, 2010
 
TODO LOUVOR AO LEITOR
DO LIVRO DESCONHECIDO



Falava de leituras, outro dia. Seguido vejo pessoas lendo grossos calhamaços de Danielle Steel ou Dan Brown. Mas que jamais leriam um livrinho denso e profundo como Being There, do Jerzy Kozinski, de menos de cem páginas. Ou Escuta, Zé Ninguém, do Reich. Deste livro, tive um depoimento curioso. Uma mulher que vivia entre livros – era mulher de um livreiro e atendia na livraria – me disse algo que definiu bem o ensaio de Reich: “entendi tudo mas não compreendi nada”. Definição perfeita. Reich escreve em um estilo simples, ao alcance de qualquer alfabetizado. Mas só pode ser entendido por quem conhece o nazismo. Ou A Arte de Amar, de Ovidio. Escrito nos dias de Cristo, quando a peste cristã ainda não empestara o mundo, tem dois mil anos e conserva um frescor extraordinário. Quem conhece hoje estes livrinhos, pequenos e fundamentais? Muito poucos.

Ou, digamos, Kalocaína, de Karin Boye. Não por acaso falo deste livro. É uma das mais belas obras da literatura universal. Foi publicada no Brasil e morreu. Eu o recebi de presente de uma amiga, ao despedir-me de Estocolmo. Ela nem imaginava que com aquele regalo estava criando um tradutor. Uma vez de volta, para praticar o sueco, decidi traduzi-lo. Terminado o trabalho, eu o propus a uma editora no Rio. A autora era totalmente desconhecida no Brasil. Para meu espanto, o livro foi publicado. A tradução, que fiz por diletantismo, acabou se revelando decisiva para minha atividade como tradutor. Mas não era disto que queria falar.

O livro é uma distopia, que antecede 1984, e duvido que Orwell não tenha bebido daquela fonte. É obra que honra qualquer literatura e passou completamente despercebido no Brasil. Despercebido pelo grande público, mas não pelo leitor exigente. Seguidamente recebo mails me pedindo notícias do livro. Ainda ontem, um leitor de Portugal queria saber onde encontrá-lo. Deve ser um dos livros mais procurados em sebos. Mas está esgotado e editor algum sonharia em republicá-lo.

Já comentei, há alguns anos, que editores estão pagando – e pagando caro – para expor bestsellers nas vitrines de livrarias. Há livrarias aqui em São Paulo, particularmente as dos shoppings, que só exibem lixo em suas prateleiras. Outro dia, em algum jornal estrangeiro, li que o bestseller já era. Estamos entrando na era do megaseller, isto é, aquele livro que é publicado em vários países ao mesmo tempo e que vende não centenas de milhares, mas milhões de exemplares.

Sou leitor que sempre buscou o livro que quase não vende. Quando saio em busca de um título, tenho de pesquisar várias livrarias. Quando não países. Minha biblioteca virou sebo. Sem ser um bibliófilo, conheço a biografia de cada um de meus livros. Onde o comprei, por onde o busquei e até mesmo onde os li. Assim sendo, foi com prazer que li este texto da Economist, enviado por um amigo:

“Muitas pessoas que lêem bestsellers, por exemplo, não lêem outra ficção. Por outro lado, a audiência de um obscuro romance é amplamente constituída por pessoas que lêem muito. Isto significa que os livros menos populares são julgados por pessoas que têm o mais alto nível, enquanto os mais populares são julgados por pessoas que literalmente não conhecem algo melhor. Um americano que tenha lido apenas um livro este ano tem grandes chances de ter lido The Lost Symbol, do Dan Brown. Ele certamente gostará deste livro”.

Há quem diga que ler é sempre bom, mesmo que se leia porcaria. Discordo. Se é para ler Dan Brown ou Paulo Coelho, penso que analfabetismo pode ser até saudável. De que adianta saber ler em Cuba? Para receber propaganda oficial na veia? Ler é prática que deve vir junto com liberdade de expressão, bom acervo literário, grande produção editorial.

Enquanto isso, busco os autores que ninguém busca. Não que queira defender minha causa. Mas todo louvor ao leitor do livro obscuro.