¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, maio 27, 2010
 
CINEMA QUER GORJETA
SEM PRESTAR SERVIÇO



Quem me acompanha, sabe que faz mais de trinta anos que não vejo cinema nacional. O último filme nacional que vi em minha vida foi Aleluia Gretchen, do Sílvio Back. Eu o assisti em Tunis, Tunísia, lá por 78 ou 79, quando fazia a cobertura do Festival de Cinema de Cartago. Assisti porque fui coagido, mais ou menos manu militari, pelo diretor. Depois disso, nunca mais.

Em primeiro lugar, porque o cinema tupiniquim não me agrada. Em segundo, porque quem financia os filmes nacionais somos nós, contribuintes. Compulsoriamente. Muitas vezes nem financiamos filmes, mas apenas o bem-estar dos diretores, vide Norma Benguel e Guilherme Fontes. Se nós financiamos, não vejo porque pagar para assistir o que já pagamos. Talvez até pensasse no assunto se a produção do filme viesse me buscar em casa de limusine. Mesmo assim, não sei.

Comentei há dois dias o estúpido e totalitário projeto de lei do senador Cristovam Buarque, de empurrar goela abaixo dos estudantes o medíocre nacional. O cinema nacional está morrendo de morte morrida. Não bastassem os dias de exibição obrigatória, o Senado – que já aprovou o projeto – pretende empurrá-lo aos estudantes. Como já se empurra Machado de Assis, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Luís Fernando Verissimo e outros que tais.

Dito isto, gosto de revisitar, de vez em quando, a culinária francesa que São Paulo oferece. Digo de vez quando, porque restaurante francês em São Paulo é sinônimo de exploração. Por acaso, está em minha escrivaninha o cardápio do Chartier, um dos mais antigos e tradicionais restaurantes de Paris, fundado em 1896. Não é a grande cozinha, é verdade. Mas é cozinha honesta. Sem falar que o restaurante, instalado em um salão magnífico, foi tombado como monumento nacional. Preço dos pratos: entre 10 e 12 euros. Isto é, entre 22 e 27 reais, na cotação de hoje. Vinhos, entre 10 e 20 euros. Ou seja, entre 22 e 44 reais. Por cem reais, você come e bebe bem. Com direito a sobremesa.

Transporto o leitor para São Paulo. Em restaurantes que mal têm uma década de idade, sem o requinte arquitetônico do Chartier, por 20 reais você não paga nem a entrada. Pratos, a partir de 40 ou 50 reais. Vinhos, por baixo, na faixa dos 100 reais. Para quem gosta de exibir status, há também os de dois, três, quatro ou cinco mil reais. Estes últimos significam duas passagens de ida-e-volta a Paris e ainda sobra troco.

Volto ao cinema. Para meu pasmo, leio hoje na Folha de São Paulo, na coluna de Mônica Bergamo, iniciativa ainda mais insólita:

“Ameaçado de fechar as portas após perder o patrocínio do banco HSBC, o cinema Belas Artes, na rua da Consolação, está negociando com um grupo de restaurantes para obter receita e manter as atividades. "A idéia seria o cliente acrescentar um valor na conta, que iria para um fundo de ajuda ao espaço", diz André Sturm, sócio do cine. A iniciativa partiu de 14 restaurantes, entre outros, Le Casserole, Arabia e Ici Bistrô. A primeira reunião para detalhar o projeto estava marcada para ontem”.

Só o que faltava. Ao ir a um restaurante, não bastassem os dez por cento de gorjeta – dos quais metade não vai para o garçom, mas para o restaurador – tenho agora de subsidiar as salas de cinema paulistanas. Entre os restaurantes que participam da malsinada idéia, estão o Casserole e o Ici Bistrô. São casas que freqüento, uma ou eventualmente duas vezes por mês, quando quero introduzir alguma amiga na cozinha francesa.

O Casserole é o mais antigo restaurante francês de São Paulo. Foi fundado em 1954. Isto é, tem pouco mais de mísero meio século. Resiste ainda no centro degradado da cidade. Com amplas janelas, dá para uma floreira, o que atenua a paisagem hostil do entorno. É ambiente agradável, que nos transporta a uma São Paulo que já não mais existe.

O Ici fica aqui perto de casa. Terá uns cinco anos de idade. É o que chamo de um restaurante com visão do futuro: a sua frente, está o cemitério da Consolação. Carta de vinhos hostil. Passo lá de vez em quando, para matar as saudades de um cassoulet ou escargot. Mas se for para contribuir com uma sala de cinema, nunca mais.

O cinema está em estado terminal no Brasil. Não que a arte, em si, esteja morrendo. É que é desconfortável ir ao cinema. A estrutura da cidade afasta o público das salas. Estacionamento, flanelinhas, risco de assalto, gente comendo pipoca e conversando como se estivesse assistindo a um DVD com amigos. Melhor então ficar em casa e ver um DVD, ora bolas!

Preciso ver quais outros restaurantes querem ressuscitar o cadáver. Para eliminá-los de minha rotina. Falta de respeito! Imagine um parisiense chegar num restaurante francês e pagar um percentual para salvar o cinema francês! Sai todo mundo entoando a Marseillaise.