¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, maio 10, 2010
 
COISA DE IANQUES


As pessoas têm de aprender a conviver com os "sem-deus" – diz hoje na Folha de São Paulo Daniel Dennet, escritor a quem o jornal confere o título de filósofo. Li pelo menos dois livros do autor e não vi nele filósofo algum. É apenas um pensador que contesta o teísmo, sempre opondo o evolucionismo às crenças religiosas. É mania típica de americano contrapor Darwin à Bíblia. Nunca me ocorreu negar a existência de Deus através da ciência. Para descrer de qualquer deus, basta ler história das religiões. Para descrer do deus cristão, uma leitura atenta da Bíblia é mais do que suficiente.

Dennet fala de aprender a conviver com os sem-deus. Deve ser coisa daquele estranho país, que produziu a bomba, mandou o homem à lua, mandou naves além do sistema solar e continua sendo uma nação onde proliferam religiosos fanáticos. Comentei há dois dias o livro de outro ianque, que afirmava: "O peso de sair do armário já não existe para os jovens gays do Ocidente: tornou-se natural". Deve também ser coisa lá daquele estranho país. Porque cá, entre nós, desde há muito ser homossexual não constitui peso algum.

Segundo Dennet, “ainda há enormes áreas do país onde, se você disser que não acredita em Deus, vai perder seus amigos, seu negócio. Nesse ponto, os ateus estão mais ou menos na mesma posição em que estavam os homossexuais nos anos 1950, ou seja, se você admitir que pertence a esse grupo, sua vida está arruinada”. Se procede a afirmação do “filósofo” – e vamos admitir que proceda – os Estados Unidos, apesar de sua ciência, sua tecnologia, sua riqueza, é hoje país tão intolerante quanto um emirado árabe.

Sou ateu desde meus verdes anos e nunca perdi amigos nem amigas por isso. Até hoje continuo conversando com minha professora de francês dos dias de ginásio, católica devota que até hoje não renegou – pelo que sei – sua fé. Após descrer, continuei mantendo boas relações com os padres que me falavam de Deus e correlatos, e minha descrença nunca afetou nosso diálogo. Verdade que os perdi no tempo e no espaço. Largaram a batina, casaram, tiveram filhos e desapareceram no vasto mundo. Se hoje não conversamos, não é por questão de fé ou descrença. Como se diz, a vida nos separou.

Nunca me senti discriminado por ser ateu e duvido que alguém o seja neste país. Claro que se eu me manifestar como descrente em Deus nalgum culto dos bispos evangélicos, certamente sofreria um violento exorcismo. Fora esta hipótese pra lá de hipotética, por ser ateu nunca perdi amigos nem negócios. Falo em negócios por alusão a Dennet, pois jamais fiz negócios em minha vida.

Perdi amigos e namoradas, isto sim – e mesmo empregos – por não ser marxista. Quem discriminou este ateu que vos escreve foram outros ateus, que professavam um ateísmo fanatizado e virulento. Nos dias de universidade, se eu me interessava por uma colega, bastava uma frase mágica para afastá-la de mim: “ele é de direita”. Ou seja, eu não era marxista. Já estive nu debaixo de uma ducha com uma árdega militante, que me afastou delicadamente com as mãos: “sinto desejo por ti, pena que política e ideologicamente não combinamos”.

Jamais tive uma namorada marxista. Espíritas, católicas e até mesmo budistas, sim. Desde que pequem, nada contra. Pecar é mais fácil do que trair a luta de classes. Aníbal Damasceno Ferreira, um de meus mestres, me dizia: "Tu estás contra toda tua geração". Na época, eu não entendia muito bem a afirmação. Mais tarde, entendi. Eu não era marxista.

Em Florianópolis, quando lá estava se instalando o Diário Catarinense, fui convidado pelo editor a assinar uma coluna. Pediu-me uma crônica, para testá-la na edição zero do jornal. Enviei-a. Na época, Stroessner, o ditador paraguaio, estava doente. Sugeri que as esquerdas rezassem pela saúde de Stroessner. Como também pela de Pinochet. Não que eu fosse defensor incondicional desses senhores. É que, após suas mortes, Castro seria o último ditador do continente. Pra quê? - leitor. Minha crônica circulou pelos terminais e foi vetada pela redação. O editor preferiu não confrontar a comunada. “Tu não podes escrever uma coisa dessas!” – vociferava indignada uma adorável comunista, em plena Beira-Mar. “Mas não é verdade? – ousei objetar. “É. Mas isso não pode ser dito”. Fui demitido por Fidel Alejandro Castro Ruz. E não devo ter sido o único.

Antes mesmo de assumir a coluna, fui ejetado do jornal. Como mais tarde fui ejetado da universidade. Neste caso, as razões não foram ideológicas. Mas fosse eu comunista, até hoje talvez estivesse vegetando em meio aos miasmas ilhéus. Desconheço caso de comunista que tenha sido expulso da academia.

Verdade que, há algumas décadas, ser ateu não recomendava ninguém no Brasil para a Presidência da República. Fernando Henrique que o diga. Candidato a prefeito de São Paulo, em 1985, deve ter perdido não poucos votos, quando vacilou ante a pergunta se acreditava em Deus:

- É uma pergunta típica de quem quer levar uma questão que é íntima para o público, uma pergunta típica de alguém que quer simplesmente usar uma armadilha para saber a convicção pessoal do senador Fernando Henrique, que não está em jogo. Devo dizer ao deputado Boris Casoy que este nosso povo é religioso. Eu respeito a religião do povo e, na medida em que respeito a religião do povo, as várias religiões do povo, automaticamente estou abrindo uma chance para a crença em Deus.

Ficou tão atrapalhado que chamou Casoy de deputado. Interrogado sobre o mesmo assunto, Lula saiu pela tangente. Disse algo mais ou menos assim: não importa se acredito em Deus. O que importa é se Deus acredita em mim. Mesmo hoje, duvido que um Serra ou Dilma, velhos comunossauros, ousem afirmar que não acreditam na divindade.

Os tempos mudaram. Hoje até mesmo divorciada aspira ao trono. Mas isto diz respeito a candidatos ao poder, que precisam satisfazer os baixos instintos do eleitorado. Noves fora esta luta pelo voto, não consigo ver nestes trópicos discriminação nenhuma a ateus.

Pelo jeito, é coisa de ianques.