¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

terça-feira, maio 18, 2010
 
A CRACA ÉTICA DO CRISTIANISMO


Caro Janer,

Cordiais saudações!

Fiquei pensando sobre a expressão “craca ética do cristianismo” que você usou em seu último texto. Acho que é uma craca irremovível, e não sei se ela é totalmente ruim. Você às vezes costuma contrapor o lado greco-romano da nossa cultura quando alguém enfatiza o lado judaico-cristão, e eu concordo contigo. Mas não dá para descartar nenhum dos dois. Somos herdeiros de Jerusalém tanto quanto de Roma ou de Atenas.

Eu e minha mulher somos ateus. Nossa cosmovisão atéia é algo que nos aproxima. Entretanto, nós passamos por todos os estágios que bons cristãos gostam de ver nos relacionamentos amorosos: amizade, namoro, noivado e casamento. E não foi por causa de qualquer pressão familiar. Simplesmente anunciamos aos nossos parentes que estávamos namorando, depois que havíamos nos tornado noivos. Nosso casamento foi civil, é claro, mas realizamos uma cerimônia muito semelhante às religiosas, inclusive fora do ambiente impessoal e frio do cartório. Antes, porém, fiz questão de conversar com o oficial do registro civil, pedindo a ele que, em seu discurso, não incluísse qualquer conteúdo religioso, pois noivo e noiva eram ateus.

Você pode interpretar tais atos como puramente estéticos ou sentimentais, mas nosso comportamento não nos torna menos ateus. Aquilo tudo simplesmente tem significado emocional, especialmente quando aceitamos nossa condição de descrentes nascidos na cultura cristã, ou homens profanos herdeiros do homo religiosus, como se expressaria Mircea Eliade. E não é para agradar família. O que quero dizer é que aceitar uma tradição só por ser uma tradição, ou para agradar parentes, é tolice, mas escolher fazer algo à maneira tradicional porque isto é agradável estética ou sentimentalmente para quem o faz não é tolice.

Ateu noiva ou não? Celebra casamentos festivos ou simplesmente acasala? A única resposta possível é a mesma que se daria se alguém perguntasse se ateu gosta de vestir terno e gravata ou prefere bermuda e camiseta: depende do gosto do ateu. Há práticas cristãs em nossa cultura que me agradam estética e sentimentalmente, tais como celebrar o natal. As pessoas chegam a fazer piadinhas comigo, pois não escondo meu ateísmo e desejo feliz natal a todos. Acho que se eu me privasse de prazeres estéticos como estes, aí sim eu estaria agindo de forma semelhante a alguém aferrado a ortodoxias. Um ateu que se priva destes prazeres me parece agir de forma semelhante a quem se abstém de algum prazer por razões religiosas.

Eu não aceitaria casar-me em um templo diante de um sacerdote, pois acho que isto seria desonesto não somente para comigo mesmo, mas para com as pessoas que professam a religião daquele templo. Mas celebrar um noivado ou casamento valendo-se de elementos externos que têm clara origem religiosa, mas despidas de seu conteúdo, me parece tão válido quanto apreciar composições de inspiração cristã de Bach pelo prazer de ouvir boa música.

Um grande abraço,

Humberto Quaglio