¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

domingo, maio 30, 2010
 
ESCRITORES EM PÂNICO


Leitor me pergunta se o livro e as bibliotecas vão acabar. Em outros termos: o ebook vai acabar com o livro tradicional? A pergunta é ociosa. Esta questão é sempre levantada por intelectuais com falta de assunto, que pretendem responder a perguntas que jamais foram feitas. Sempre leio qualquer consideração sobre livros eletrônicos e nunca vi alguém defender a estúpida idéia de que o livro em papel vá acabar.

A estratégia é simples e típica das esquerdas. Lança-se ao ar uma idéia fácil de contestar – que na verdade nunca foi aventada – e depois passa-se a contestá-la. O leitor cita um artigo de Umberto Eco, "Da efemeridade das mídias", onde o semiólogo italiano brande um único argumento a favor do livro impresso: uma pane ou um vírus nos computadores pode levar a perder definitivamente uma grande quantidade de informação, é por isso que os livros impressos seriam ainda importantes. Isso quer dizer que bibliotecas e museus terão a mesma finalidade?

Pelo jeito, o lúcido Eco ainda não ouvir falar de pendrives, HDs externos, DVDs, que têm uma capacidade quase ilimitada de armazenamento – mais do que muitas bibliotecas -, isso sem falar dos sites que a Internet oferece para a preservação de dados. O argumento é dos mais precários, quase de um neoludita. Em recente livro publicado pela Record, Não Contem com o Fim do Livro, em um diálogo com Jean-Claude Carrière, Eco repete estas bobagens.

"O livro ainda é o meio mais fácil de transportar informação. Os eletrônicos chegaram, mas percebemos que sua vida útil não passa de dez anos", diz o semiólogo, em entrevista realizada ao Estadão. "Afinal, ciência significa fazer novas experiências. Assim, quem poderia afirmar, anos atrás, que não teríamos hoje computadores capazes de ler os antigos disquetes? E que, ao contrário, temos livros que sobrevivem há mais de cinco séculos?"

Isto não é mais verdade. O livro transporta informação, é claro. Mas o livro nem sempre está onde dele precisamos. Sem ir mais longe, cito este nosso país. Já não mais existem livrarias nas pequenas cidades do Brasil. Quando existem, só vendem bestsellers. Onde você vai encontrar uma obra de Platão, ou de Tomás de Aquino, ou de Descartes, numa cidade do interior? Já não vou tão longe. Procure um Nietzsche, Orwell ou Koestler. Não encontrará. Mas se há telefonia em sua aldeia, e se você tem um computador, poderá ter esses autores – talvez nem todos, mas pelo menos os clássicos – em poucos segundos em sua tela.

Quanto a ler antigos disquetes: quem tem ainda antigos disquetes em sua escrivaninha? Ninguém. Eco, para justificar seus argumentos, está falando de algo que há muito morreu. Carrière, autor que eu considerava inteligente, relembra o blecaute acontecido em Nova York, em julho de 2006: se o incidente tivesse se prolongado, tudo estaria irremediavelmente perdido, sem eletricidade. "Em contrapartida, ainda poderíamos ler livros, durante o dia, ou à noite à luz de uma vela, se toda herança audiovisual estivesse perdida".

Ora, blecautes são temporários, ou não teríamos mais civilização. Não é a leitura que depende de energia, mas o mundo contemporâneo todo. Confesso que me sinto mal se fico doze horas sem energia. Mas doze horas sem ler não é grave. (O pior é ter de subir escadas). Milhões de pessoas passam meses e mesmo anos sem ler neste nosso mundinho.

O argumento mais despropositado foi brandido por Eco. Desde O Nome da Rosa, passei a desconfiar deste senhor. Ele cria um novo gênero literário, que poderíamos chamar de policial-teológico e que, no fundo, em pouco se distingue de O Código da Vinci. Uma história boba e inverossímil, recheada de erudição. O leitor que gosta do gênero policial se sente de repente inteligente, lendo trechos em latim que não entende. Eco questiona a capacidade de discernimento de quem está acessando a Internet. "Lá, encontramos tanto a Bíblia como Minha Luta, de Adolf Hitler. E o que fazer se uma obra não recomendável surgir na tela de alguém despreparado intelectualmente? Esse será o problema crucial da educação nos próximos anos".

Alto lá, companheiro! Em biblioteca que se preze, temos de ter acesso tanto à Bíblia quanto ao Minha Luta. Como entender o nazismo se não leio Hitler? Isso sem falar que encontramos na Bíblia massacres e convites ao genocídio que Hitler nenhum sonhou.

Carrière acompanha o colega de sandices: "Cada livro traz um personagem só para mim. Há obras que cruzam os séculos e outras não. Isso depende muito do gosto pessoal. Por isso que o livro tradicional não vai desaparecer".

Claro que não vai desaparecer. Da mesma forma, os livros eletrônicos continuam trazendo os mesmos personagens que o livro em papel. O livro é eterno. O que eventualmente muda é seu formato. Papel à parte, não há diferença alguma entre um ebook e um livro impresso.

O que está em jogo é outra coisa, o direito autoral. Editores e escritores, produtores de papel, distribuidores e livreiros estão em pânico com a difusão do livro eletrônico. Imagine, por exemplo, o futuro da lucrativa – e onerosa – indústria do livro didático. Digamos que o livro didático passasse a ser eletrônico. Quantos exemplares precisaríamos para sua edição? Um só. E mais nenhum. Indústrias do papel, gráficas, editoras e livrarias iriam à falência. Não pode. A indústria precisa sobreviver. O consumidor que se lixe.

Como vão viver os escritores? – pergunta-me outro leitor. Que vivam de profissões honestas, como os demais homens. Escritor é profissão? Em um livro que causou algum escândalo na Paris dos anos 70 - Le Bazar des Lettres - Roger Gouze contestou com energia o caráter profissional do ofício. "O estatuto oficial do escritor me parece tão absurdo quanto o das prostitutas que também reivindicam o seu: não se pode ao mesmo tempo desafiar o poder, a polícia, as leis (por hipócritas que sejam) da sociedade e pedir-lhes uma proteção". Se a literatura é uma arte - argumenta Gouze - o escritor deve, como todo mundo, ter uma profissão que o sustente, ao lado da arte que ele alimenta com o melhor de si mesmo. "Não uma segunda profissão, pois a literatura não é uma".

Como viverá então o escritor se a obra não lhe rende nada? "Como todo mundo" - responde Gouze. Claro que Gouze falava de uma época em que literatura era vista como contestação. Hoje, os autores estão se profissionalizando. O editor pesquisa o paladar do público e encomenda um produto de moda. O escritor, como carneirinho dócil, escreve o que o público pede e o editor ordena.

Editores já me pediram para reformular livros meus. Não eram do gosto do público. Claro que não reformulei e claro que não fui editado. Tudo bem. Adeus papel. Hoje escrevo o que quero em meu blog. E posso publicar eletronicamente qualquer livro. A Scribd - e várias outras editoras eletrônicas estão aí para isso.

O personagem mais venal que conheço é o escritor profissional. Ele segue os baixos instintos de sua clientela. O público quer medo? Ele oferece medo. O público quer lágrimas? Ele vende lágrimas. O público quer auto-ajuda? Ele a fornece. É preciso salvar o famoso leite das criancinhas.

Eu jamais faria isso. Sei como fazer. Mas não faço. Nestes dias em que os ebooks libertam o escritor da ditadura dos editores, é espantoso ver escritores como Eco e Carrière condenando esta nova tecnologia.

Ao que tudo indica, estão defendendo seus direitos de autor, coisa que se tornou obsoleta nestes dias de Internet.