¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, maio 20, 2010
 
MOSCOU DESBUROCRATIZA TURISMO


Sempre tive um certo xodó pela Rússia. Começou com Dostoievski, continuou com Kuprin. Tolstoi e Gorki nunca me atraíram muito. Em suma, a primeira bolsa que solicitei no Exterior foi para a Patrice Lumumba. Não havia nada de ideologia nisso. Eu estudava russo na época e a Patrice oferecia bolsas. Eu queria era sair do Brasil. Não importava para onde. O que interessava é que esse onde fosse longe. De preferência que nele se falasse uma língua para mim estranha.

Meu apreço pela Rússia teve poderoso reforço com José Monserrat Filho, hoje especialista em Direito Espacial pela Lumumba. Eu teria uns 17 anos, quando o encontrei numa madrugada no café do Matheus, Praça da Alfândega, Porto Alegre. Ele voltava de Moscou. Eu não conseguia acreditar estar falando com pessoa que falava russo, que havia vivido naquelas plagas. Perguntei-lhe sobre como era residir na universidade. Disse-me que os quartos tinham três beliches para seis alunos. Naquela mesma noite, meu apreço pela Rússia diminuiu em muito.

Felizmente, não ganhei a bolsa. Em Estocolmo, encontrei tristes privilegiados. Terminados seus cursos em Moscou, tinham de sair do país. Naqueles dias, para o Brasil não podiam voltar. Considerava-se que quem estudava em Moscou era ipso facto comunista. O que nem sempre era o caso. Com graduação superior, acabavam tendo de permanecer num limbo europeu onde lavavam pratos. Eu os chamava internationela diskare. Em sueco, lavadores internacionais de pratos. Verdade que o Monserrat escapou desta condição e acabou trabalhando no Jornal do Brasil, como redator de assuntos espaciais.

Mas curiosidade é algo que não morre. Em Paris, tive várias chances de ir a Moscou e a preços muito em conta. O PCF financiava parte da viagem. Mas não me agradava a idéia de ter de pagar hotel com antecedência e menos ainda de ter de viajar com datas fixas. Não poderia demorar-me em uma cidade se gostasse dela. Tinha dia preciso para ir e dia preciso para voltar. Sem falar que a Europa estava cheia de cidades fascinantes que eu ainda não conhecia.

Acabei indo à Rússia só em 2.000. Ou melhor, a São Petersburgo. Viajava pela Escandinávia e a Finlândia constava de meu roteiro. Ora, São Petersburgo está a sete horas de trem de Helsinki. Considerei que era uma ocasião mais ou menos única de conhecer o país, ou pelo menos parte dele. Aí começaram meus dissabores.

Para início de conversa, visto só em Brasília. Até aí, nada demais. O problema era que, para ter o visto, eu precisava ter hotel reservado e antecipadamente pago. Vá lá! Na Tchayka, agência que tratou dos trâmites, me aconselharam: não tenta hotel barato, vais te arrepender. No mínimo, hotel de preço médio. Tudo bem. Topei.

São Petersburgo não deixa de ter charme. Fundada sobre um pantanal por Pedro, o Grande, em 1703, pretendia ser uma porta para o Ocidente. Foi capital do Império Russo por duzentos anos e deixou de sê-lo em 1918, após a Revolução Russa. Cortada por canais, é também conhecida como a Veneza do Norte. Sua arquitetura, gloriosa em muitos momentos, está hoje em cacos. Basta percorrer a cidade para ver que um projeto, inicialmente grandioso, foi interrompido por algo. Esse algo, sabemos o que foi.

Eu saíra de Helsinki, de uma estação ferroviária belíssima, que hoje é monumento histórico. Fui cair na Estação Finlândia, lá onde Lênin chegou para desfechar a tomada do Palácio de Inverno, onde hoje está o Ermitage. Cheguei numa daquelas noites brancas cantadas por Dostoievski. A noite era linda, irreal. Se bem que eu já as conhecia de outras andanças. A estação, tétrica. Deserta e hostil. Minha mulher queria voltar. Mas não havia como voltar.

Chegamos ao hotel. Para começar, nos retiveram o passaporte. Tinha de ser registrado na polícia local. Mas que tem a ver a polícia com minha visita à cidade? – perguntei. Nada feito. Fiquei sem passaporte por 48 horas. No quarto, não havia lâmpada que acendesse. Muito menos papel higiênico. E isso que paguei relativamente caro, 130 dólares. Na Suécia, país que de barato não tem nada, eu me hospedara em bons hotéis por 70 dólares.

Antes de viajar, eu havia marcado um restaurante na Nevsky Prospekt, o Kafe Literaturnoje, a poucos passos do Ermitage. No salão superior, belíssimo, onde Puschkin teria feito, em 1837, sua última ceia antes de morrer, havia uma excursão de japoneses, um pianista e uma cantora de voz esganiçada. Os japoneses, em ordem unida, ergueram um último brinde e deram no pé. Ficamos, eu e minha mulher, sozinhos, naquele restaurante magnífico, sem ver sombra de russos por perto. Exceto o garçom, o pianista e a taquara rachada. Pagamos em torno de trinta dólares por uma refeição para dois, mais vinho. Nada demais para quem viaja por terras estrangeiras. Mas aquele café centenário, que nos tempos dos tzares abrigara a elite da literatura russa, depois de setenta anos de comunismo, tornara-se proibitivo para russos.

Visitei depois o Nicolai, suntuoso restaurante instalado na mansão de um ministro do Tzar, de mesmo nome. De novo um grupo de turistas erguendo brindes. Findos estes, de novo eu e minha mulher olhando para os garçons, lustres e tapeçarias. Percorri outros, sempre baratos, mesmo se comparados a preços de São Paulo. Sempre vazios ou com alguns turistas, jamais com russos. O salário mensal de um russo mal pagava uma refeição em um restaurante. E se pagava, acabava o salário do mês.

Outra instituição das mais antipáticas são os preços diferenciados para turistas. Um russo para 15 rublos para entrar numa catedral ou navegar pelo Neva. O estrangeiro paga 250. Entendo que o russo não possa pagar 250 rublos. Mas não precisava descontar em nós, estrangeiros.

Sim, é bom visitar São Petersburgo. Mas não recomendo a quem ainda não tenha visto o melhor da Europa. Em todo caso, tudo isto é para saudar a recente decisão da Federação Russa. A partir do 07 de junho próximo, cai a necessidade de visto para viagens de curta duração. É de supor-se que também caia o pagamento adiantado de hotéis. Melhor ainda seria se caísse a obrigação de deixar as cidades em dias pré-determinados.

Desde os tempos de Lênin, a Rússia alimentou uma psicologia de fortaleza assediada. Todo turista era visto como um espião em potencial. Nos dias de Stalin, um anjo da guarda era designado para acompanhar cada visitante. Não conheci esses dias. Mas mal cheguei na Rússia, fui registrado na polícia. Isso uma década depois do desmoronamento da União Soviética. Foi necessária mais uma década ainda para que Moscou desburocratizasse o turismo.

Longa é a jornada dos comunistas rumo ao entendimento.