¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, maio 05, 2010
 
NÓS TAMBÉM
TEMOS BABEL



Coisas no mínimo bizarras estão acontecendo na Catalunha. Comentei outro dia que a Generalitat autoriza todo catalão a assaltar quem quer que seja, desde que o produto do roubo não ultrapasse 400 euros. Comentei também a exótica proposta do Partido Socialista no poder, que exige que todas as línguas oficiais – o castelhano, o catalão, o basco, o galego e o valenciano – sejam faladas na segunda câmara do Parlamento. O que exigiria um serviço de interpretação simultânea semelhante àquele das Nações Unidas ou do Parlamento europeu. Senadores que falam a mesmíssima língua, o espanhol, teriam de portar aparelhos de tradução para se entenderem entre si.

Leitor me lembra que o absurdo já aconteceu. Em novembro passado, o jornal catalão La Vanguardia noticiava que o Parlament, como eles dizem, havia contratado um serviço de tradução ao espanhol para atender, na Comissão de Cooperação e Solidariedade, uma delegação da Nicarágua. Esta situação provocou mal-estar entre alguns deputados, que criticaram a atitude do secretário de Cooperação da Generalitat, David Minoves, ao exigir o uso do catalão no Parlament, apesar de o espanhol, que também é língua oficial da Catalunha, ser entendido e falado por todos os deputados.

Sei disso, caro leitor. Justo nesses dias eu deambulava pelas terras catalãs. Como estava em viagem, não tive muitas chances de comentar o episódio. Se não comentei então, comento agora. Um nacionalismo tacanho parece ter subido à cabeça dos socialistas, a ponto de exigir que numa Casa onde pessoas que falam uma mesma língua tenham de se comunicar em outra. Segundo uma porta-voz da Secretaria de Cooperação, Minoves tentou visualizar como os deputados catalães trabalham em sua própria língua, “que não tem porque mudar quando vem uma delegação estrangeira". O secretário esquece que a língua de Castilla, la Vieja, é também língua oficial do Parlament. Para que facilitar quando se pode complicar?

Isto ocorreu longe de nós, naquele estranho país onde há cinco línguas oficiais. Ainda bem que vivemos neste bendito Brasil, onde a língua oficial é o português, não é verdade?

Não é. Ontem ainda os jornais noticiavam que o Ministério Público Federal abandonou o júri do assassinato do cacique Marcos Veron após declarar-se categoricamente contra a decisão da juíza Paula Mantovani Avelino, da 1ª Vara Federal Criminal de São Paulo, que impugnou, a pedido da defesa dos réus, o tradutor que havia sido designado para atuar na sessão. Ontem seriam ouvidas outras vítimas do ataque de funcionários da Fazenda Brasília do Sul, em Juti, Mato Grosso do Sul, a um grupo de indígenas que ocupavam o local. O ataque, ocorrido em 2003, resultou na morte do cacique, espancado até a morte.

Leio no Estadão que, de acordo com o MPF, o pedido da defesa é contrário aos artigos 210 e 231 da Constituição Federal e a diversas convenções internacionais, como o artigo 2º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O julgamento foi suspenso e não tem data para ser retomado. O MPF vai recorrer ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região para garantir aos índios o direito de se expressar na própria língua, o guarani.

O MPF e a assistência da acusação requereram que a primeira pergunta dirigida a cada vítima e testemunha fosse feita em guarani-kaiowá e que, nessa língua, perguntassem como a vítima ou a testemunha desejariam se expressar, mas a juíza indeferiu o requerimento e decidiu perguntar, em português, em que língua vítimas e testemunhas gostariam de ser ouvidos. A tradução foi deferida apenas parcialmente e só seria usada se o indígena respondesse, em português, que preferiria se expressar em guarani.

Diante da negativa da juíza, o MPF abandonou o plenário. Como sem Ministério Público não há júri, a juíza suspendeu a sessão. Segundo o procurador Vladimir Aras, “é direito deste índio e de todos que estão aqui de falar o idioma guarani”.

O promotor se embasa no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, assinado em Nova York, em 1966, e ratificado pelo Brasil, que prevê: “Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua”.

Essa agora! Considerando-se que o governo brasileiro reconhece 180 línguas indígenas, o leitor pode ter uma idéia da confusão que pode assolar nossos tribunais se a moda pega. Mais um pouco, e se concederá a bugres que falam o português o direito de dirigir-se à Justiça em apaniecra-canela, craó, crejé, cricati, parcatié, pucobié, rancocamecra, quencatejê, xocleng, panará, suiá, tapaiúna.

O Ministério Público insiste em oficializar a moda. Babel é nossa.