¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, maio 04, 2010
 
JOSIPA BROZA TITA:
30 ANOS ESTA NOITE



Meus passaportes são hoje peças de museu. Tenho vistos de países que não mais existem: Alemanha Oriental, Tchecoslováquia, Iugoslávia. Todos estes países, mais ou menos artificiais, morreram nos anos 90. Mas a Iugoslávia começou a morrer há exatamente 30 anos. Quando morreu Josip Broz Tito. Josipa Broza Tita, em servo-croata. A antiga Iugoslávia foi obra do marechal. “Notre Tito”, como me dizia uma árdega peoniana. Morto o homem, morreu o país. Que durou pouco mais que quarenta anos. Menos do que eu. Nossa! Sou mais longevo que uma nação.

Eu estava em Paris naquele 04 de maio. Como Franco, Tito morreu cortado em pedaços, em um hospital em Ljubljana. Longa é a agonia desses preciosos instrumentos de Estado. Enquanto a sucessão não se decide, o Estado não permite que morram. Eu tinha certa simpatia pelo homem. Enfrentara os dois grandes ditadores do continente, Hitler e Stalin. E mantivera uma política de independência para seu pequeno país. Pequeno, mas uma imensa colcha de retalhos constituída por oito unidades federativas. Seis repúblicas: Eslovênia, Croácia, Bósnia, Hezergovina, Macedônia, Montenegro, Sérvia e duas províncias autônomas, Kosovo e Voivodina. Tudo isto dividido entre muçulmanos, sérvios e croatas.

Corria uma piada na época. Que a Iugoslávia era constituída por seis repúblicas, cinco etnias, quatro línguas, três religiões, dois alfabetos e um partido. Tito na verdade era um ditador, a seu modo. Mas os iugoslavos gozavam de relativa liberdade. Eram os únicos cidadãos do Leste europeu que podiam ir e vir à Europa de cá. Tanto que a Iugoslávia era considerada uma espécie de corredor para a liberdade.

Sempre gostamos de um país quando nele existe alguém a quem amamos. Daí decorre minha quente simpatia por aquele país que já morreu. Em Ponche Verde, assim saudei sua morte:

As Mil e Uma Noites curiosamente evocavam o marechal, das cem noites que lera lhe restavam algumas chispas de poesia: loado sea el hombre que no tiene semejantes! Ao mesmo tempo lhe evocavam Krk: loado sea el hombre que te tiene por debajo! Mas viajava, pelo menos teoricamente, para cobrir Tito, não Krk. Os últimos dias do marechal o comoviam, a perspectiva de que o avião caísse não o assustava tanto quanto o destino destes preciosos utensílios do Estado, cuja vida era cruelmente espichada pelas sofisticações da medicina. Sentisse um dia que se aproximava sua hora, fugiria de cidades e hospitais, se imaginava sentado sob um umbu olhando o mar verde da pampa, esperando qual cavalo a visita da Moira Torta.

Enfim, tinha de tirar o chapéu aos iugoslavos. A agonia de Tito havia sido relativamente curta se comparada com a de Franco ou Boumedienne, e nenhum comunicado de Ljubljana falara em gripe. Pois quando se noticiava que um homem de Estado estava com gripe era porque uma metástase já era senhora de sua carcaça. A propósito, para quando seria a gripe de Brejnev? Não lhe desagradaria uma viagem a Moscou.


Krk. Nestas três letrinhas reside meu amor pelo país construído pelo marechal. Sempre gostei de nomes estranhos. Nos dias de Estocolmo, ouvi falar de uma ilha, a maior da Croácia, localizada no norte do Mar Adriático e perto do continente, Krk. Jurei para mim mesmo que um dia conheceria Krk. E comecei a prestar atenção nas iugoslavas.

Encontrei-a em Paris, em meu curso de Literatura Comparada. Não se chamava Krk, mas seu nome era cheio de kas e ves, e isso me fascinava. Nossa relação foi complicada. Eu lhe fazia certas propostas, a meu ver irrecusáveis, e ela balançava a cabeça na horizontal. Outras vezes, quando eu menos esperava, balançava a cabeça em sinal afirmativo. Até que eu descobrisse que aquelas gentes balançam a cabeça na horizontal para dizer sim e na vertical para dizer não, se passaram boas semanas.

Passei a chamá-la de Krk. Era líder das juventudes comunistas da Macedônia e brava como ela só. Certa noite, ao telefone, disse que a julgava muito católica. Lançou-me o repto: “vem cá e vou te mostrar quem é católica”. Fui. Não era. E não consigo esquecer o gesto delicado com que a súdita do marechal me afastou com as duas mãos: “Ne me touche pas! Je suis autogestionnaire!” Autogestão era o modelo político de "notre Tito".

Através de Krk, conheci parte da Croácia e Macedônia. Estudávamos literatura na Sorbonne Nouvelle. Terminados seus dias de Paris, ela voltou para seu país. Uma vez lá, me convidou para passar o Natal chez elle. Fui correndo. Desci pela Itália e atravessei o Adriático, rumo à peoniana adorada. No barco de Bari a Dubrovnik, tive uma percepção do que me esperava. Conversava com uma dálmata, ela não entendia o que fazia um brasileiro ir até a Macedônia. É que tenho uma amiga em Skopje. Ma – disse a dálmata – sono tutti teste dure. Bom, disso eu sabia, se sabia!

Dubrovnik, a pérola do Adriático, a Ragusa dos antigos romanos, é uma cidade belíssima encarapitada sobre uma rocha. No verão, mais parece um restaurante a céu aberto. Da Plaka, a praça central, me ficou uma lembrança, daquelas que jamais saem da retina. Duas croatas, com longos vestidos brancos transparentes, exibiam sua nudez por entre as mesas dos restaurantes. De Dubrovnik fui para Skopje, onde fui recebido com tapete vermelho pelos camaradas macedônios. Levaram-me aos mais escondidos restaurantes da montanha e – hospitalité oblige – jamais consegui puxar a carteira.

Foi lá que senti o clima de medo que imperava mesmo no país mais aberto da Cortina de Ferro. Eu conversava com várias poetisas – a impressão que me ficou é que toda jovem era poeta naquelas plagas – em um restaurante, e nossa língua comum era o francês. Foi quando sentaram dois senhores bem apessoados e muito bem vestidos na mesa ao lado. Em minha mesa, pareceu que passara um anjo. Todo mundo silenciou, para logo após mudar de assunto. Uma vez em casa, perguntei à minha amiga peoniana o que acontecera. “É que eles pareciam ser da polícia política”. Quer dizer, quando líder comunista muda de assunto com medo da polícia, é sinal de que o mar não está para peixe.

Krk mesmo, a ilha, acabei não conhecendo. Mas conheci Mljet, uma ilha comprida e estreita com um lago interior. Dentro do lago, outra ilha. Nesta ilha interior, um convento que “notre Tito” transformou em colônia de nudismo. Mais um ponto para o marechal. Mas tudo passa neste mundo. A Iugoslávia desmoronou e ficou reduzida a duas repúblicas, Sérvia e Montenegro. Que duraram apenas três anos, de 2003 a 2006. Com a independência de Montenegro, o último vestígio da ex-Iugoslávia é hoje a Sérvia. Que há dois anos perdeu mais um pedaço, Kosovo. Está ficando cada vez mais curta a vida das nações.

Hoje, a Iugoslávia é verbete de enciclopédias. Resta todo um cinema e literatura, mais a memória dos ex-iugoslavos. (É da antiga Iugoslávia um dos filmes mais lindos que vi em minha vida: Lepota Poroka - em francês, La Beauté du Peché – do iugoslavo Zivko Nikolic, com uma atriz divina, de divinos olhos de um verde adriático, Mira Furlan. Uma moça que vivia nas montanhas da Iugoslávia, vai trabalhar em uma colônia de nudismo na costa croata. O conflito cultural é inevitável). Tito, que durante 35 anos governou com punho de ferro um país com seis nacionalidades, estadista que tentou dar novos rumos ao socialismo opondo-se a Stalin, um dos personagens mais singulares da Guerra Fria, sequer foi lembrado hoje na imprensa brasileira.

Sic transit gloria mundi. Mas eu não o esqueço. Muito menos a Iugoslávia. Graças a Krk. Que hoje é macedônia. Assim se preserva a memória dos povos.