¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, maio 08, 2010
 
VEJA QUER CRIAR TRIBO


A última edição de Veja traz uma reportagem de capa que, no fundo, é uma apologia do homossexualismo, intitulada “Ser jovem e ser gay”. Uma coisa é o que uma reportagem diz. Outra, a que deixa no ar. Não, Veja não diz que homossexualismo é o único comportamento desejável. Mas vende a idéia de que ser homossexual é ser jovem, ser lindo, ser inteligente, ser moderno. É como se homossexualidade fosse algo que distingue as pessoas, separando-as dos heterossexuais.

No fundo, um preconceito às avessas. Ser homo ou ser hetero não deveria definir ninguém. Sexualidade é questão de foro íntimo e ninguém tem nada a ver com isso. No fundo, a reportagem parece ter como objetivo promover o livro The New Gay Teenager (O Novo Adolescente Gay), de mais um desses psicólogos ianques, Ritch Savin-Williams, que pretende ter descoberto a América: "O peso de sair do armário já não existe para os jovens gays do Ocidente: tornou-se natural".

Ora, há décadas os homossexuais saíram do armário. Os redatores, parece que acometidos de um wishful thinking, exageram: “A idade em que um jovem acredita que definiu sua preferência sexual tem caído. Uma pesquisa feita pelas universidades estaduais do Rio de Janeiro (Uerj) e de Campinas (Unicamp) tem os números: aos 18 anos, 95% dos jovens já se declararam gays. A maior parte, aos 16”. Ora, ninguém vai acreditar, em sã consciência, que apenas 5% dos universitários – se é que a pesquisa abrange apenas universitários – sejam heteros. E se o universo pesquisado vai além da universidade, mais inverossímil ainda é a estatística.

A reportagem insiste em mostrar meninos e meninas, todos jovens, sarados, lindos e bem tratados, como protótipos de homossexuais. Ser homossexual parece ser apanágio da juventude. Nenhum é efeminado, nenhuma é masculinizada. Nas fotos, não vemos nenhum adulto ou idoso. Certo, a reportagem se restringe aos jovens. Mas entre os jovens homossexuais, há também jovens feios, gordos, mal vestidos, pobres – e mesmo esses exemplares caricaturais, rapazes cheios de ademanes femininos e mulheres que mais parecem caminhoneiros. Estes não são contemplados pela reportagem. No universo homossexual pesquisado pela revista, tudo é beleza, graça, saúde, riqueza, simpatia. Um ideal a ser perseguido.

Tenho mais de seis décadas de vida. Embora me sinta espiritualmente jovem, pertenço a uma faixa etária que não mais pode ser chamada de jovem. Minha juventude, diria que ficou quarenta anos atrás. Ora, naqueles dias convivi serenamente com homossexuais, em uma cidadezinha de treze mil habitantes, nos cafundós da Campanha gaúcha, onde ser homossexual era perfeitamente normal. Tanto que Dom Pedrito foi – salvo prova em contrário – a primeira cidade brasileira a eleger um prefeito homossexual. Fiz todo meu ginásio ao lado de três colegas que nada queriam com mulheres e os tratávamos sem espanto algum. Mais ainda, o colégio era católico. Não faltará quem objete: et pour cause. É possível. Mas nunca ouvi falar de casos de pedofilia no Ginásio Nossa Senhora do Patrocínio.

Rui Bastide, o alcaide, não fazia segredo algum de sua homossexualidade. Já contei em 2004. Conto de novo, que curta é a memória das gentes.

Final dos anos 50, há quase meio século, portanto. Naquela cidadezinha da fronteira gaúcha, nos confins da fronteira seca entre Brasil e Uruguai, então com 13 mil habitantes, tive minhas primeiras lições de tolerância. Líder político local, sempre da oposição, voz de estentor, bom de voto e temível nos debates, Bastide jamais escondeu suas preferências por jovens efebos. Nem por isso deixava de contar com o apreço dos pedritenses.

Alto, apolíneo no porte, dionisíaco na vida, Rui Bastide foi eleito e reeleito vereador várias vezes e chegou a ser prefeito da cidade. Nos anos 70, teve seus direitos políticos cassados, por um ato único do presidente Garrastazu Médici. Honrado com a deferência, comemorou o ato com foguetes. Comentário indiferente na cidade: "O Brasil vai perder muito com esta cassação". Na época, não se falava em gays, tampouco havia associações de gays e lésbicas. "Já procurei até médico" - confessou-me um dia Bastide -. "Mas que vou fazer? É a minha natureza." Em tempo: Brasil era um negrão que fazia jus aos favores do futuro alcaide.

Sua detenção pelos militares virou folclore. O vereador estava prestando seus serviços ao Brasil, quando batem na porta de seu apartamento. Ainda pelado, entreabriu a porta. Três militares o procuravam, um oficial e dois soldados, de metralhadoras em punho.

- O senhor é o Rui Bastide? - perguntou o oficial.
- Sou.
- Então o senhor está convidado a comparecer às dependências do 14º Regimento de Cavalaria.
- Acho que vou declinar do gentil convite - respondeu Bastide. - Ocorre que não é bem um convite. O senhor terá de ir. Agora e como está.
- Então me levem - disse o Rui - abrindo a porta e os braços, em plena glória de sua nudez.

"Os soldadinhos enrubesceram - me contava o Rui -, não sabiam para onde apontar as metralhadoras. Aí, me deram tempo. Tomei banho, me perfumei, me despedi do Brasil, não sabia quanto tempo ia ficar preso".

Pelo jeito, a prisão foi produtiva. Em vez de xingar a ditadura, Rui encenou um balé, onde bravos lanceiros do Ponche Verde, envergando diáfanas bombachas brancas, executavam impecáveis pas de deux enquanto cantavam uma ode ao 14º RC: "Querido Exército..."

A trajetória do Rui, a meu ver, está à espera de um bom cineasta. Em passadas andanças pela Europa, em vários países relatei este caso. Vi alemães, franceses, espanhóis perplexos, admitindo que em suas comunidades, por mais abertas que fossem aos novos tempos, não haveria lugar para um prefeito gay. (Era em época anterior aos prefeitos homossexuais de Paris e Berlim). Fala-se muito hoje em abrir o jogo, sair do armário, assumir-se. Tais expressões eram desconhecidas em Dom Pedrito. Se alguém era homossexual, ninguém tinha nada a ver com isso e estamos conversados.

Há fatos que na infância nos marcam a memória e só depois de muito viver lhes conferimos a verdadeira dimensão. Ocorreu no Upamaruty, distrito rural de Livramento, na fronteira com o Uruguai, onde vivi meus dias de guri. Torrão de gente rude, onde qualquer adulto tinha de cuidar-se com a língua. Lá na Linha Divisória - como era mais conhecida a região - uma palavra mal empregada, ou mal entendida, podia custar uma vida. Lá, conheci Seu Alvarino.

Fora trazido da cidade, como cozinheiro do Peixoto, um bolicheiro local. Negro, enorme, espadaúdo, durante o dia cuidava da cozinha e das coisas do Peixoto. Nas tardes de domingo, cumpridas suas tarefas caseiras, vestia uma blusinha de rendas cor-de-rosa, punha sua mais rodada saia longa e sentava na porta do bolicho, munido de agulhas e novelos. A gauchada ia chegando, boleando a perna e atando os cavalos no alambrado. Em meio àquela gente armada, revólveres e facões pendendo da guaiaca, seu Alvarino, indiferente às charlas e ruídos de esporas, permanecia absorto em seu crochê, como se ali estivesse tricotando desde o início dos tempos.

Jamais ouvi qualquer piada a respeito das prendas domésticas de Seu Alvarino. Também, pudera! Seria uma empreitada um tanto arriscada dirigir qualquer comentário desairoso àquele par de munhecas. Seria homossexual? Ou o travestir-se seria apenas uma prosopopéia que o acometia aos domingos? Fosse como fosse, se gostava de usar saias e fazer crochê, isto era algo que só a ele dizia respeito.

Havia também na cidade um regente de orquestra, notoriamente homossexual, que tinha filhos e netos e era muito querido pelos pedritenses. Dizia-se que seus netos brincavam de roda em torno a ele cantando: vovô é bicha, vovô é bicha. Lenda, talvez. Mas mostrava o clima da cidade.

Que alguém seja definido por sua visão de mundo, entende-se. Fulano é comunista, beltrano é católico, sicrano é ateu. Ou por sua condição social: este é pobre, aquele é rico, aquele outro é classe média. Costumamos também definir uma pessoa por sua nacionalidade ou Estado. Jean é francês, o Hans é alemão, o João é brasileiro. Juca é gaúcho, o Zé é mineiro. Que alguém seja definido por sua opção sexual, isto é algo que não entendo.

Veja, ao que tudo indica, está querendo criar uma tribo. Mais um pouco e teremos um partido político. Aliás, já há candidatos à corrupção disputando o dito voto gay. A expressão “sair do armário” não é inocente. Por que alguém tem de sair do armário? Pra começar, armário não é exatamente o melhor local para se fazer sexo. Um quarto é mais adequado. E o que acontece entre as quatro paredes de um quarto não diz respeito a ninguém que esteja fora do quarto.