¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, junho 23, 2010
 
AOS QUE CHORAMINGAM

Uma das boas coisas da Internet é que as crônicas não morrem. Os ornitólogos continuam chilrando por crônica que escrevi há três anos e os coitadinhos dos ateus continuam choramingando por crônica que escrevi há pouco mais de mês. Me escreve um deles:

O Sr. Janer deve viver em outro planeta. Eu, como ateu (não-ativista, diga-se de passagem), já perdi vários amigos, SIM. Sou mal visto, discriminado e ridicularizado, SIM.

Sorte a sua, Senhor Janer, nunca ter sofrido isso. Mas eu, e outros milhões
de ateus do Brasil, sofremos.


Pra início de conversa, duvido que haja milhões de ateus no Brasil. É estatística difícil de estabelecer, já que nenhum censo foi feito neste sentido e nem teria razões para ser feito. Ser ateu exige uma certa cultura, e no Brasil temos uma maioria não só de analfabetos como de analfabetos funcionais, aqueles que sabem ler mas não lêem. Chez nous, todo mundo crê em algo. Seja no deus cristão, seja nos deuses africanos, seja no espiritismo ou no marxismo, que não deixa de ser outro tipo de religião. Isso quando não crêem em todos ao mesmo tempo. Sempre é prudente apostar uma fichinha em cada crença, sabe-se lá o que vai dar! Ou no budismo, vegetarianismo e ornitologia, coisas que nada têm a ver com deuses, mas também estão virando religião. Nós, ateus, constituímos uma insignificante minoria.

Tenho recebido não poucos mails de ateus se queixando de que são discriminados. Há os que perderam namoradas e inclusive um deles teria sido expulso de casa. Pelo jeito, andam com uma fita na testa, onde se lê: “sou ateu”. Estas questões, eu só as discuto em público, na Internet, afinal fazem parte do debate contemporâneo. Em minhas relações privadas, raramente conversamos sobre o assunto. Se estou com uma namorada, nem me ocorre discutir teologia. Temos coisas mais agradáveis a tratar. Estou adorando conviver com uma adorável católica, que quer ir a Éfeso, onde estaria enterrada a Virgem. De nada adianta dizer-lhe que a Virgem subiu aos céus de corpo e alma, que nada da sagrada carcaça ficou para os vermes. Tanto faz como tanto fez. O que importa é que a adoro e com ela iria tanto a Éfeso como ao Hades.

Com meus amigos, muito menos. Intuo que alguns são ateus, sei que outros não são, mas isso em nada interfere em nosso relacionamento. Às vezes temos grandes embates teológicos nos botecos. Mas discutimos textos bíblicos, etimologias, dogmas. Argumentos. Em nenhum momento se coloca a crença ou descrença de alguém. Tenho ótimo entendimento com meus taxistas e garçons e concluí que todo taxista ou garçom acredita em Deus. Que acreditem, não vou contestá-los. Não será por isso que vou deixar de estimá-los.

Só reajo quando alguém acha que fui curado de um carcinoma pela graça divina. Aí me pico. Estou aqui, vivito y coleando – como dizem os espanhóis – graças a uma competente equipe de oncologistas. Nada a ver com o judeu aquele. Muito menos com Jeová ou com o Paráclito. Também me irrita ver pessoas que tiveram excelentes cuidados médicos e atribuem sua cura a Deus. Esta atitude constitui um insulto à medicina. Se Deus cura, por que procuraram medicina de ponta? O pior é que tem médico que acredita nisto, negando sua própria formação.

Diria que a maior parte das pessoas com as quais convivo nem têm idéia de meu ateísmo. Namorei meninas de todas as crenças e isto nunca foi obstáculo entre nós. Suponho até que muitas nem tenham tido conhecimento de minha descrença. Isso pouco importa. Quem faz do ateísmo uma profissão de fé, no fundo é um religioso. Nunca falta quem me objete: mas se não crês em Deus, como conheces tanto dele?

Bom, vejo a Bíblia como Harold Bloom, como obra literária. É livro que me agrada ler, nele estão os mitos que formataram a cultura ocidental. O Quixote não existe, nem por isso vou deixar de comentar suas andanças. Muito menos Pantagruel ou Candide. O triângulo também não existe, é um ente de imaginação. Mas se alguém me der as medidas dos catetos, eu calculo a hipotenusa. Não discuto com ninguém - nem em público, nem em privado - sobre a existência ou não existência de Deus. Quanto às características desse Deus, conforme está no Livro, discuto e com sumo prazer. Deus é o mais universal personagem de ficção criado pela mente humana: até mendigos analfabetos, que jamais manusearam um livro, o conhecem. O personagem pegou. Veio para ficar.

Estou com mais de sessenta anos, sou ateu desde os 15 ou 16. Era ateu quando nasci, no que não vai nada de novo. Todos somos ateus ao nascer. Religião é fruto da família, escola, Igreja ou Estado. Em suma, da educação. A religião me foi imposta a machado lá pelos dez anos, mas logo me libertei. Em mais de meio século de caminhada, jamais tive problemas por ser ateu. Tive problemas, isto sim, por não ser comunista.

Os meninos que choramingam me parecem estar choramingando para passar bem. Se uma namorada me deixa por ser ateu, que vá passear, ora bolas! O mundo está cheio de crentes e atéias adoráveis. Quanto ao leitor que me disse ter sido expulso de casa por ser ateu, que me desculpe: não acredito. Pais não expulsam filhos de casa por serem ateus.

E se por acaso expulsam, são fanáticos com os quais não é possível conviver.