¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, junho 29, 2010
 
MARMANJO CONSULTA PSICANALISTA


Descobri há pouco, lendo o Estadão, que pertenço à raivosa extrema direita brasileira, por não gostar de futebol. Lei agora na Folha de São Paulo que estou precisando de psicanálise. Escreve Rubem Alves, antigo colunista do jornal:

- Sou indiferente ao futebol, exceto quando o Brasil está jogando. Essa indiferença tem sido a causa de muitos embaraços, e cheguei mesmo a levar esse problema à minha psicanalista. "Por que é que todo mundo se entusiasma com futebol e eu não me entusiasmo?" Ela me sugeriu que deveria haver algum trauma infantil não resolvido no início dessa perturbação. Sugeriu-me entregar-me às associações livres da mesma forma como os urubus se deixam levar pelo vento. Voei. E eis que, de repente, uma cena esquecida me apareceu.

Essa agora! Desde quando não gostar de futebol constitui problema e mais ainda, problema que tenha de ser levado a um psicanalista? Para início de conversa, considero um indício de pobreza mental consultar um desses gigolôs das angústias humanas. Mais grave ainda é o caso de um homem que pensa, escreve e se situa naquele círculo que se pretende formador de opinião pública. A verdade é que, em certos meios, análise é a solução para tudo. Tanto que naquela coluna de auto-ajuda da Veja, assinada por Betty Milan, psicanalista que vive em Paris, todo e qualquer drama humano tem invariavelmente uma solução: procure um analista.

Ora, psicanálise é vigarice. Tanto que a profissão sequer foi regulamentada. Na França, para efeitos do imposto de renda, psicanalistas são equiparados a videntes, quiromantes, astrólogos e profissionais do sexo. Cá entre nós, se você estiver desempregado e precisar ganhar o pão nosso de cada dia, a solução está ao alcance de sua mão. Alugue uma saleta, compre um divã e ponha uma plaquinha na porta: psicanalista. É claro que a guilda vai chiar, mas nada poderão fazer contra sua nova “profissão”. Não estando regulamentada, não se pode exigir qualquer requisito para seu exercício. Afirmei isto há mais de trinta anos, quando escrevia nos jornais de Porto Alegre. Soube então que alguns psicanalistas pensaram em processar-me. Só pensaram, pois tiveram de tirar os cavalinhos da chuva.

Mas vejamos o trauma infantil que marcou a delicada psique do sensível cronista. Estava em um campo de futebol de roça, onde dois times jogavam, quando uma vaca investiu contra a bola. Seu irmão, para protegê-lo da vaca, arrastou-o para um chiqueiro e o colocou junto aos porcos.

- Minha analista, comovida com o meu relato, concluiu que minha indiferença ao futebol se devia a essa experiência em que o jogo aparece ligado a uma vaca desembestada e a porcos mal cheirosos. Concordei. Minha primeira experiência com o futebol foi traumática: mistura de bola, vaca e porcos. E está certo: não é raro que uma partida termine em tourada e que seja manifestação de espírito de porco...

Ora, se assim fosse, hoje eu não conseguiria sequer suportar o cheiro de álcool. Em meus dias de juventude, quando não sabia beber, tomei porres de conseqüências eméticas. (Confesso que um deles me marcou: até hoje não suporto o cheiro de gim). Provavelmente não gostaria nem de Mozart ou Fernando Pessoa, pois muito me encharquei ouvindo estes dois. E talvez não gostasse nem de mulher, pois muitos pileques tomei com elas em minhas universidades. Certa vez, ao acordar, encontrei a meu lado uma mulher nua. Olhei-a por todos os ângulos, não a reconheci. Bom, já que estava ali... Quando ela finalmente acordou, perguntou-me: e tu, quem és? Tentamos reconstituir nosso itinerário na noite anterior, até que achamos onde havíamos nos encontrado, um bar na Salgado Filho. Por algumas semanas, parei de beber. Mais por precaução que por qualquer outro motivo.

Abomino o futebol, já disse. Não o jogo em si, que considero bonito, inteligente, dinâmico. Mas o fanatismo que gera. Não preciso procurar em minha infância trauma algum que justifique minha ojeriza. Simplesmente detesto multidões, passionalismo, barulho, foguetes, buzinas. A multidão maior que consigo suportar é a lotação de uma sala de ópera. Mas aí se trata de uma multidão culta, civilizada. Fora isso, mais de seis pessoas para mim é multidão. Em minhas mesas de bar, ou na távola redonda cá de casa, só por acidente sentam mais de seis pessoas. Em geral são quatro, preferentemente duas. Uma mesa de dez ou vinte pessoas me arrepia. Durante muitos anos, o réveillon me pegou no estrangeiro. Sempre encerrado em quartos de hotel. Multidões me horripilam. Escusado dizer que não vou a festas.

Se a moda pega, teremos ainda de consultar psicanalistas para saber por que não gostamos de caju ou goiaba, de jiló ou mollejas, de samba, rap ou funk. Ou do Piazzolla ou do Chico Buarque. Ou do Paulo Coelho ou do Machado de Assis. Algum trauma deve ter ocorrido em nossos tenros dias. Só pode ter sido isso. Ou então a psicanálise não tem sentido.

De qualquer forma, é triste ver um marmanjo consultando uma psicanalista para saber por que não gosta de futebol.