¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, junho 05, 2010
 
ORNITOLOGIA
VIRA RELIGIÃO



Em janeiro de 2007, escrevi crônica intitulada “Sobre a periculosidade dos ornitólogos", onde eu alertava para estes aparentemente inofensivos observadores de pássaros. E digo aparentemente porque por trás destes senhores há quase sempre uma campanha para vetar uma represa, uma hidrelétrica ou uma estrada. Recebi na ocasião centenas de bicadas de uma revoada de ornitólogos furiosos, que viam em mim um inimigo do planeta.

Pois agora, três anos depois, voltou um novo enxame de ongueiros para xingar-me em função daquela distante crônica. Isto é que é bom na Internet, um artigo fica permanentemente no ar. Curiosamente, as revoadas são sazonais. De repente, não mais que de repente, de ontem para cá recebi mais de vinte mails furiosos, de biólogas, ornitólogos, sociólogos e outros ólogos e pelo jeito a chuvarada de insultos está longe de acabar. Enfim, insultos constituem rotina em minha vida e confesso que me divertem.

Não passa dia sem que católicos ou comunistas me xinguem, psicanalistas ou psicanalisados, petistas ou indigenistas, espíritas ou judeus. Ainda há pouco consegui superar-me. Atraí a ira de uma associação de ateus, logo eu que atraio a ira dos crentes por ser ateu. O espantoso em tudo isto é que nenhuma destas tribos me xingou tanto quanto os ornitólogos. Estou começando a suspeitar que ornitologia virou religião, com rituais, dogmas e culto. Republico abaixo o artigo de 2007, para situar o leitor no debate. E, confesso, para irritar um pouco mais a classe.

Os leitores todos dizem-se revoltados, indignados, perplexos, estarrecidos com o texto. Um argumento recorrente perpassa quase todos os mails. Afirmei que pássaros migram. Os defensores incondicionais dos pássaros me consideram um néscio, afinal existem pássaros que não migram. Tudo bem. Mas se há os que não migram também há os que migram. O problema não reside nisto. O fato é que uma represa significa energia, água potável, desenvolvimento e saúde para comunidades inteiras. Ninguém faz uma represa para praticar vela ou remo. Ou porque lagos são bonitos.

Uma represa atende sempre a uma necessidade social. Esta necessidade tem prioridade sobre as eventuais necessidades dos curiangos-do-banhado ou macuquinhos-da-várzea. E se tiverem de morrer cem ou duzentos macuquinhos ou curiangos em função da sobrevivência de milhares de seres humanos, paciência. Onde quer que o homem se instale, ele dá um chega-pra-lá nas demais espécies. São Paulo, antes de ser São Paulo, era habitat de bugios, felinos, aves, cobras e lagartos. Como todo conglomerado humano. Quando o homem chega, o bicho tem de dar no pé. A avenida Paulista, por exemplo, não é ambiente dos mais saudáveis para lebres, coelhos ou tartarugas.

Uma indignada bióloga acha que “o Conselho Federal de Biologia e os Conselhos Regionais deveriam entrar com uma ação contra esta pessoa, pois ela está denegrindo a imagem de sérios, competentes e importantíssimos profissionais. Essa pessoa merece punição pelas palavras publicadas! Chamar ambientalistas de ecochatos é o ápice de ignorância desta pessoa”.

Como se a palavra ecochatos fosse criação minha. Muito me honraria tê-la criado. Infelizmente não sou o autor desta bela trouvaille. Ecochato é palavra que há muitos anos freqüenta as páginas dos jornais e designa, obviamente, os ambientalistas que fazem uma defesa histérica da natureza em detrimento do desenvolvimento humano. O que a leitora está pedindo tem um nome. Chama-se censura. Os ambientalistas estão acima de qualquer crítica.

“Até hoje, não consigo compreender como alguém pode ser contra o trabalho de biólogos, ambientalistas, ornitólogos, ecólogos, etc. – diz a leitora -. Estas profissões são vitais para a sobrevivência de toda a população! Assim como outras profissões, não podemos viver sem estes profissionais! Ora, como vou atacar os médicos, bombeiros, dentistas, assistentes sociais e tantas outras profissões, se o trabalho deles é de suma importância para as pessoas?”

Vamos por partes. Em momento algum me manifestei contra o trabalho de qualquer profissional. Me manifestei, isto sim, contra estes senhores que brandem passarinhos contra represas. Médicos, bombeiros e dentistas não são subsidiados por entidades internacionais para vetar represas a torto e a direito. Ainda há pouco, um cineasta ianque teve o desplante de vir ao Brasil para protestar contra a hidrelétrica de Belo Monte. Imagine o inverso, um cineasta brasileiro fazendo campanha contra uma usina nos Estados Unidos. Seria no mínimo expulso do país.

“Nos diga como é a sua vida... o que faz? O que consome? Como é a sua casa? De onde veio cada centímetro de material que compõe ela? Você se alimenta? De onde vem os alimentos e a água que bebe? Você tem carro? E o combustível, de onde tira?”

Bom, minha vida em pouco difere da vida das demais pessoas. Minha casa é a casa normal de qualquer cidadão, minha alimentação também. A produção dos alimentos e da água que bebo dependem em muito das barragens que os ecochatos vetam para preservar curiangos e macuquinhos. Não fossem as represas que cercam São Paulo eu não teria nem como escrever estas linhas.

Mas a leitora tocou um ponto interessante. Quer saber se tenho carro e de onde tiro o combustível. Ora, leitora, não tenho carro. Nunca tive. Em compensação, conheço um monte de ecologistas que não dispensam o carro. Têm uma filosofia no mínimo curiosa: todos os carros são poluentes. Exceto o meu.