¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, junho 08, 2010
 
Revisitando Porto Alegre:
AS GAÚCHAS E O RIO



Comentei, outro dia, o neurótico fenômeno da importação de maridos. Pouco confiantes na qualidade do produto nacional, algumas gaúchas, paulistas e cariocas fazem as malas e vão buscar o príncipe na Argentina, Uruguai ou Chile. Economizam o ano todo, cumprem rigoroso jejum, para uma semana ou mês de amor. Após alguns anos, acabam descobrindo que estupidez não tem fronteiras. Até o dia da iluminação, ignoram sistematicamente o colega ou amigo que está a seu lado. Que, muitas vezes, é exatamente o parceiro almejado.

Conversando com amigas, descobri outra faceta desta neurose. A busca da gaúcha pelo carioca.

Enquanto profissionais liberais e funcionárias públicas bem remuneradas podem se dar ao luxo de buscar o príncipe em Buenos Aires ou Santiago, há toda uma faixa de mulheres economicamente independentes que prefere buscá-lo no Rio. São em geral funcionárias públicas nem tão bem remuneradas, professoras secundárias e universitárias. E aqui já cometem o primeiro equívoco. O Rio é bem mais caro que Buenos Aires.

O gaúcho não serve. É machão, dominador. Trata a mulher como se estivesse numa estribaria. Além disso, não sabe guardar segredo. Gaba-se aos amigos de suas conquistas. As professoras do interior consideram, inclusive, que Porto Alegre não é suficientemente populosa para garantir um tranqüilo anonimato. Além disso, mais de 50% da população é constituída por gente do interior. Nada mais constrangedor que para a gauchinha do interior do que encontrar um vizinho ou conterrâneo no escurinho de uma boate ou bar.

O Rio é outra coisa. O carioca tem cancha, sabe agradar uma mulher. Não faz relatório aos amigos. No Rio, ninguém conhece ninguém. Logo, tudo é permitido. A possibilidade de topar-se com o vizinho é de uma em um milhão.
E lá se vai a gauchinha ao Rio. Após um mês ou dois, volta brozeada, relaxada, doce, amanteigada, em paz com o universo. Nem liga para o horror de ter de voltar para esta terra de machões. Pois ainda está no Rio, em espírito. Sonhando, desde já, com o Rio no próximo ano.

Mas os meses custam a passar. A euforia do Rio se torna nostalgia longínqua. O trabalho volta a ser rotina, o dia-a-dia entristece, o coração pede afeto, o corpo pede carinho. Mas o gaúcho não serve. Um carioca, ou jejum.

Torna-se irritadiça, agressiva. Se absorve no trabalho. Se consegue mais um emprego, melhor: não tem tempo para pensar. Se não consegue, é o caos. Anda com os nervos à flor da pele. É acometida de uma psicose aquisitiva. Compra blusas, blusinhas e blusões. Sapatos, botas e tamancos. Não pode ver loja sem consumir. Quando vê, tem cinqüenta pares de sapato, dezessete conjuntinhos, nove camisas brancas, sete vestidos de noite. Só não tem com quem sair.

É o momento ideal, perfeito, ótimo, para o aparecimento de um segundo personagem em sua vida, o psicanalista. O elo que faltava a este ciclo simbiótico.
A professora quer um príncipe, nada menos. O gaúcho não é príncipe, pois não conferimos realeza às pessoas que nos cercam. Príncipe é o desconhecido, o distante, o carioca. Mas o carioca está no Rio, e a professorinha está aqui. O último recurso é o psicanalista. Ela conta todo seu drama. Ele ouve e lhe dá razão. Ela passa a aceitar, como contingência da condição humana, a dolorosa ruptura de meigo serzinho.

Com isto, todos ganham e ninguém perde. O psicanalista fatura alto, o carioca não precisa suportar o ano todo a gaúcha pegajosa. Ela se conforma com a situação, embora tenha de pagar caro pelas sessões de análise. E viva a psicanálise!
Enfim, viver todos vivem. Saber viver é que são elas. Só gostaria de deixar um recado às neuróticas gaúchas: estudos feitos pelos alunos da Universidade Federal do Rio de Janeiro mostraram, entre outros dados, as cariocas estão preferindo... as cariocas. Um grande percentual das moças decidiu de deixar de lado companhias masculinas e conversar com outras mulheres. A pesquisa foi feita entre jovens de 18 a 22 anos e entre mulheres de 30 a 35 anos. Não tenho em mãos os resultados globais da pesquisa. Em todo caso, os motivos que estariam levando as cariocas a deixar os homens de lado seriam a solidão, o fascínio de novos caminhos, desilusão amorosa e sentido de independência cada vez maior.

Será necessário que as gaúchas se mudem para o Rio para descobrir que o carioca é um mito? E que o problema não está no outro, mas na cuca da gente mesmo?

(Porto Alegre, Folha da Manhã, 24 maio 1976)

Comentário 2010 – Em quatro décadas, mudou muito o panorama. Não é preciso mais ir ao Rio. Na época, sem querer, provoquei um estardalhaço danado, principalmente na Secretaria de Educação. Houve quem aventasse que eu pretendia sabotar os vôos da Varig. Quem mais cobrava as professoras eram gaúchos que tinham suas razões para cobrá-las. Empunhavam a crônica e tascavam a pergunta: é por isto que vais tanto ao Rio?