¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, junho 20, 2010
 
SARAMAGO E NETCHAIEV


Minhas considerações sobre a morte de um dos mais ilustres stalinistas do século XXI geraram um efeito inesperado. Já recebi não poucos mails defendendo, não propriamente Saramago, mas o atentado às torres gêmeas. Recebi inclusive uma longa lista das invasões dos Estados Unidos mundo afora. Como se eu, algum dia, tivesse feito a defesa da política externa americana. Os americanos são responsáveis por não poucos massacres pelo mundo todo e não serei eu a negar o óbvio.

Uma leitora argumenta que os Estados Unidos provaram de seu próprio veneno ao terem treinado Bin Laden contra os russos. Vá lá. Os Estados Unidos também apoiaram Saddam Hussein na guerra contra o Irã. Longe de mim apoiar a cínica estratégia ianque. Daí a jogar dois aviões cheios de civis que nada têm a ver com o peixe contra dois prédios cheios de civis que tampouco nada têm a ver com o peixe vai uma longa distância. Entendo um ataque ao Pentágono ou à Casa Branca. Mas não consigo entender jogar inocentes contra inocentes.

Volto a Saramago. Se condenou os desmandos americanos, jamais disse uma palavrinha contra os crimes dos comunistas, fossem chineses, soviéticos ou cubanos. A teoria do terror tem suas origens no país onde eclodiu a revolução comunista. Em meados do século XIX, surgiu na Rússia tzarista um pequeno manifesto intitulado O Catecismo do Revolucionário, escrito na Suíça e assinado por dois revolucionários russos, Serguei Guennadovich Netchaiev e Mikhail Bakunin.

Este panfleto tem sido até hoje a cartilha que inspirou todo terrorismo do século seguinte, desde Lênin, Stalin, Yasser Arafat, George Habash, Wadi Haddad, Carlos, o Chacal, Che Guevara, Aloysio Nunes Ferreira, Lamarca, Marighella e Fernando Gabeira, etarras ou OLP. Entre milhares de outros, bem entendido. (Se alguém não lembra mais quem foi Aloysio Nunes Ferreira, eu ainda lembro. Foi ministro da Justiça no governo Fernando Henrique). As estratégias do catecismo influenciaram todo o século passado e foram utilizadas pela Frente de Liberação Nacional na Argélia, pelo Vietcong no Vietnã, e pelos movimentos guerrilheiros latino-americanos, entre outros.

Netchaiev tinha 22 anos na época da publicação do panfleto. Sem poder matar um tirano, acabou matando um estudante, Maxim Ivanov – suspeito injustamente de ser agente duplo da Ochrana, polícia política tzarista – o que lhe valeu o afastamento de Bakunin, que reprovou sua “repugnante tática”. Netchaiev, condenado a 25 anos de prisão, continua conspirando mesmo entre as grades, planejando inclusive o assassinato do tzar.

Morre nas masmorras da fortaleza Pedro e Paulo, em São Petersburgo, após doze anos de reclusão. Segundo o manifesto, “é necessário que o revolucionário, duro para com ele próprio, o seja também para os outros. Todas as simpatias, todos os sentimentos que poderiam emocioná-lo e que nascem da família, da amizade, do amor ou do reconhecimento, devem ser sufocados nele pela única e fria paixão da obra revolucionária. Para ele não existe mais que um prazer, que uma consolação, que uma recompensa, que uma satisfação: o sucesso da Revolução. Não deve haver, dia e noite, mais que um pensamento e um objetivo: a destruição inexorável. E prosseguindo com sangue frio e sem descanso a realização deste plano, deve estar pronto a morrer, mas pronto a matar com as suas próprias mãos todos aqueles que se oponham à sua realização”.

Segundo Bakunin e Netchaiev, “a nossa tarefa é de destruir, uma destruição terrível, total, implacável, universal”. Os autores pregavam ainda a necessidade de se unir “ao mundo selvagem dos bandidos, este verdadeiro e único meio revolucionário da Rússia”.

Sensível aos movimentos subterrâneos de sua época, Dostoievski toma Netchaiev como personagem em Os Possessos. Na obra, um outro personagem, Ouspenski, pergunta a Netchaiev:

- Que direito temos de tirar a vida de um homem?
- Não se trata de direito – diz Netchaiev – mas de nosso dever de eliminar tudo o que prejudica a causa.

A Rússia também provou de seu próprio veneno, quando mulheres-bomba chechenas se explodiram no metrô de Moscou, matando nove pessoas, e em dois aviões russo, matando outras 89. Os chechenos, ou ossetas, ou árabes – que também estavam entre os terroristas – apenas seguiam uma antiga tradição russa. Durante a Guerra Fria, a União Soviética – liderada pela Rússia – usou e abusou do terror. Nos campos de treinamento de Aden, Baalbek e Beirute, formaram-se os quadros que saíram a seqüestrar e matar mundo afora. Seu dever era eliminar tudo o que prejudicasse a causa.

O Brasil que o diga. Em 1935, antes mesmo da ativação destes campos, Luís Carlos Prestes, assessorado por um grupo de terroristas internacionais a mando de Stalin, voltou ao Brasil para defender a “causa”, isto é, a sovietização do país. Derrotada a Intentona, em 64 a União Soviética, desta vez tendo Cuba como ponta de lança, tenta de novo a conquista do país. Tentativas semelhantes ocorreram na Argentina, Uruguai e Chile.

Como a Revolução devia atingir o orbe todo, África e Ásia também foram manchadas de sangue. O saldo, segundo os autores de O Livro Negro do Comunismo, foi de cem milhões de cadáveres. A Europa, como santuário de terroristas do mundo todo, foi relativamente poupada. Em A Rede do Terror, a jornalista Claire Sterling nos mostra que até a Suécia, a pacata e aprazível Suécia de Olof Palme, foi uma mãe para terroristas de todos azimutes. Não bastasse abrigar carinhosamente os assassinos, chegou a fornecer 300 jovens suecos ao al-Fatah, para serem treinados em campos de guerrilha na Argélia, em 1969. Esta mesma complacência – e generosidade – em relação ao terrorismo, pode ser atribuída também a países como a França ou a então Alemanha Ocidental.

Em 1991, quando o império soviético se fragmentava, a Chechênia proclamou a independência da Federação Russa. Moscou não a reconheceu, mas esperou até dezembro de 1994 para intervir militarmente. Os combates se prolongaram até agosto de 1996. Saldo da chamada primeira guerra da Chechênia: cerca de 15 mil soldados russos, 10 mil guerrilheiros e mais de 80 mil civis mortos. Grozni, a capital chechena, foi arrasada a bombas e 80% da cidade foi destruída. O número de refugiados chegou a 350 mil. Claro que tais ações não inspirariam aos chechenos sentimentos exatamente amorosos.

Ou seja, massacres e terror não são exclusividade ianque. Quem quer que condene os EUA por suas invasões, tem também de condenar a Rússia pelas suas. Quem quer que defenda o atentado ao World Trade Center – como fez o prêmio Nobel luso – está seguindo a cartilha do terror de Netchaiev.