¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, julho 10, 2010
 
AINDA AS ENTREVISTAS IMAGINÁRIAS


Leitor entusiasta de Nelson Rodrigues – do cronista, não do teatrólogo nem da Suzana Flag – eu já nem lembrava que ele também fazia entrevistas fictícias. Quem me alerta é Cledson Ramos, um de meus fiéis interlocutores. Segue uma delas, na qual Nelson se diverte com Dom Helder Câmara, um de seus fregueses de livreta.

“(...) Até que, um dia, na crônica, ocorreu-me a idéia das ‘entrevistas imaginárias’. Aí estava a única maneira de arrancar do entrevistado as verdades que ele não diria ao padre, ao psicanalista, nem ao médium, depois de morto.
“Fascinou-me a ‘entrevista imaginária’. Precisava, porém, arranjar-lhe uma paisagem. Não podia ser um gabinete, nem uma sala. Lembrei-me, então, do terreno baldio. Eu e o entrevistado e, no máximo, uma cabra vadia. Além do valor plástico da figura, a cabra não trai. Realmente, nunca se viu uma cabra sair por aí fazendo inconfidências. Restava o problema do horário. Podia ser meia-noite, hora convencional, mas altamente sugestiva. Nada do que se diz, ou faz, à meia-noite, é intranscendente. Boa hora para matar, para morrer ou, simplesmente, para dizer as verdades atrozes.

“(...) E súbito um nome ilumina minhas trevas interiores: D. Hélder!. De todos os vivos e mortos do Brasil, era ele o mais urgente, o mais premente. E, de mais a mais, uma batina é sempre paisagística.

“Ontem, finalmente, houve, no terreno baldio, a ‘entrevista imaginária’. À meia-noite, em ponto, chegava d. Hélder. Lá estava também a cabra, comendo capim, ou, melhor dizendo, comendo a paisagem. À luz do archote, começamos a conversar. Primeira pergunta: ‘O senhor fuma, d. Hélder?’. Resposta: ‘A entrevista é imaginária?’ Acho graça: ‘Ou o senhor duvida?’. E d. Hélder: ‘Se é imaginária, fumo. Qual é o teu?’. Digo: ‘Caporal Amarelinho’. Cuspiu por cima do ombro: ‘Deus me livre. Mata-rato!’.

“Faço a pergunta: ‘Que notícias o senhor me dá da vida eterna?’. Riu: ‘Rapaz! Não sou leitor do Tico-Tico nem do Gibi. Está-me achando com cara de vida eterna?’. No meu espanto, indago: ‘E o senhor acredita em Deus? Pelo menos em Deus?’. O arcebispo abre os braços, num escândalo profundo: ‘Nem o Alceu acredita em Deus. Traz o Alceu para o terreno baldio e pergunta’.

“Ele continuava: ‘O Alceu acha graça na vida eterna. A vida eterna nunca encheu a barriga de ninguém’. D. Hélder falava e eu ia taquigrafando tudo. Aquele que estava diante de mim nada tinha a ver com o suave, o melífluo, o pastoral d. Hélder da vida real. E disse mais: ‘Vocês falam de santos, de anjos, de profetas, e outros bichos. Mas vem cá. E a fome do Nordeste: Vamos ao concreto. E a fome do Nordeste?’.

“Não me ocorreu nenhum outro comentário senão este: ‘A fome do Nordeste é a fome do Nordeste’. D. Hélder estende a mão: ‘Dá um dos teus mata-ratos’. Acendi-lhe o cigarro. ‘Diz cá uma coisa, meu bom Nelson. Você já viu um santo, uma santa? Por exemplo: Joana D’arc. Já viu a nossa querida Joana D’arc baixar no Nordeste e dar uma bolacha a uma criança? As crianças lá morrem como ratas. E o que é que esse tal de são Francisco de Assis fez pelo Nordeste? Conversa, conversa!’

“Lanço outra isca: ‘É verdade que o senhor vai para o Amazonas?’. Riu: ‘Onde fica esse troço? Ó rapaz! Ainda nunca desconfiaste que a fome do Nordeste é o meu ganha-pão? E o Amazonas é terra de jacaré. Tenho cara de jacaré?’. Concordo em que ele não tem nenhuma semelhança física com um jacaré. Indago: ‘E o comunismo?’.

D. Hélder conta: ‘Quando estive nos Estados Unidos, bolei um cartaz assim: O arcebispo vermelho! Era eu o arcebispo vermelho, eu!’. Insinuei a dúvida: ‘Mas esse negócio de comunismo é meio perigoso’. Nova risada: ‘Perigosa é a direita. A direita é que não dá mais nada. O arcebispo vermelho fez um sucesso tremendo nos Estados Unidos.’.

“Pede outro cigarro. Fez novas confidências: ‘Sou homem da minha época. Na Idade Média, eu era da vida eterna, do Sobrenatural. Fui um santo. É o que lhe digo: cada época tem seus padrões. Benjamim Costallat, no seu tempo, era o Proust. O charleston já foi a grande moda. Pelo amor de Deus, não me falem da vida eterna, que é mais antiga, mais obsoleta do que o primeiro espartilho de Sarah Bernhardt. Hoje, a moda não é mais Benjamim Costllat, nem o charleston. Entende? É Guevara. O santo é Guevara. E acompanho a moda’.

“Desfechei-lhe a pergunta final: ‘E a Presidência da República?’ D. Hélder respira fundo: ‘Depende. A fome do Nordeste é o barril de pólvora balcânico. Fome, mortalidade infantil, muita miséria e cada vez maior. Chegarei lá’. Era o fim da ‘entrevista imaginária’. Despedi-me assim: ‘Até logo, presidente’. Respondeu: ‘Obrigado, irmão’. E antes de partir fez a última declaração: ‘Olha, as donas de casas têm uma simpatia para curar dor de barriguinha em criança. Acredito mais na simpatia do que na ressurreição de Lázaro’. Disse isso e sumiu na treva.”