¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, julho 04, 2010
 
BEBER PARA VIVER,
NÃO PARA MORRER



Comentei, há mais de dois anos, estudo publicado pelo Instituto Nacional Francês do Câncer (INCA), segundo o qual na relação entre o que comemos e bebemos e as possibilidades de vir a ter um câncer, o álcool é o primeiro a sentar-se nos banco dos réus. Na referência álcool-câncer não existiria "dose protetora". Com seus efeitos invisíveis, "as pequenas e repetidas doses são as mais nocivas", destaca o presidente do INCA, Dominique Maraninchi.

Para Paule Martel, diretora de pesquisa do Instituto de Investigação Agrônoma (INRA), é desaconselhado todo o consumo diário de vinho. “O consumo de bebidas alcoólicas está associado a um aumento do risco de se sofrer câncer de boca, faringe, laringe, esôfago, cólon e reto, mama e fígado". O risco aumentaria 9%, no caso de câncer de cólon e reto, se for consumida uma taça ao dia. E esse risco chegaria inclusive a 168% para os cânceres de boca, faringe e laringe.

Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Assim fosse, França, Itália, Espanha e Portugal já teriam sido dizimados pelo câncer. Não é o que vemos. Quem freqüenta um restaurante nesses países constata que os nacionais, de fato, jamais tomam uma taça de vinho ao dia. Em geral, tomam uma garrafa, muitas vezes dividida entre dois. Em Madri, é normal que cada almoço executivo, que normalmente custa dez euros - R$ 22,30 na cotação de hoje – seja acompanhado de media botellita de vino. Mas nem sempre é meia. O garçom muitas vezes deixa uma garrafa inteira na mesa. Quando eu reclamava: “pero no es media botella?”, o garçom invariavelmente respondia: “beba lo que quiera, caballero!”

Na ocasião, me lembrei de personagem que conheci há oito anos. Tinha 93 e bebia, religiosamente, uma garrafa de vinho por dia. Chama-se Étilo e fazia jus ao nome. Pena que já morreu, aos 97 anos. Gostaria de levar “seu” Étilo até o INCA, para ver o que diriam os pesquisadores sobre sua longevidade. Ora, direis, a exceção não justifica a regra. De acordo. Mas proibir uma tacinha diária do sangue das uvas, como diz a Bíblia, me parece um exagero que aos céus clama desmentido.

Periodicamente, os grandes jornais publicam alertas alarmantes sobre o álcool. A última Veja notícia que no Brasil, 80% dos adolescentes já beberam alguma vez na vida e 22% dos jovens estão sob risco de desenvolver dependência de álcool. “O que os pais podem fazer?” – pergunta a revista.

Nada, diria eu. A maioria dos brasileiros bebe e quem bebe não tem autoridade alguma para proibir um filho de beber. Poderia fixar-se, em comum acordo, uma idade para o início do hábito. Claro que 12 anos – como em um caso que a revista cita – é muito cedo. Mas quem impedirá um adolescente de beber lá pelos 14 ou 15, quando muitos já se iniciaram na maconha ou ecstasy, isso para não falar no crack ou cocaína?

A legislação proíbe vender álcool a menores de 18 anos. Mas não pune o ato de consumir bebida alcoólica. O adolescente surpreendido comprando ou consumindo bebida não pode ser responsabilizado pela Justiça. Então fica o dito pelo não dito. Se no país não há polícia que dê conta de coibir o consumo de drogas, que ninguém espere que haja um policial fiscalizando cada boteco.

A repórter Natalia Cuminale, ao comentar o caso do menino que começou a beber aos 12 anos, relata que aos 16 ele já “acumulava histórias e vexames por conta do excesso de bebida. Desde uma briga com a namorada – ele foi colocado para fora da festa por um segurança - até um striptease no balcão de um bar”. Os especialistas do ramo que me desculpem. O problema aí não é o álcool. É o mau caráter de quem bebe. Os jornais nos trazem notícias todos os dias de pessoas que matam em função da bebida. Não vou negá-los. Mas no botecos que freqüento, todo mundo bebe – alguns em doses industriais – e jamais tive notícia que alguém tivesse matado alguém por ter bebido.

O máximo que alguns conseguiram matar foi a si mesmo. Em uma mesa de meu boteco predileto, já constatei seis baixas nos últimos quatro anos. Quatro cirroses, um enfisema, uma crise cardíaca. O último, o do enfisema, morreu ontem. Um dos sobreviventes da mesa deu-me a notícia, bastante assustado. “Mais alguns dias e só restarei eu na mesa. Se restar”.

Opções. Todos eram adultos e estavam conscientes do que faziam. Um deles, eu o vi uma semana antes da partida. Cadavérico, pálido, rosto chupado, não lhe dei uma semana de vida. Morreu antes. Bebendo serenamente seu uísque. Contei a história a meus médicos. Eles coincidiram em seus pareceres. “Se estava condenado mesmo, melhor morrer bebendo o que dá prazer”.

O que falta, a meu ver, é uma educação para o álcool. O ensino se preocupa em oferecer educação para o sexo, que é atividade bem mais simples que o beber. Em meus dias de Estocolmo, anos 70, quando ainda era praticamente proibido beber na Suécia – fosse pelo preço ou pelas restrições ao álcool – nos fins de semana havia um cheiro ácido de vômito nos corredores e vagões do metrô e adolescentes caídos ou vomitando pelas calçadas. Não sabiam beber.

Em Paris, Madri ou Lisboa, onde não havia maiores restrições ao álcool, não se via um bêbado sequer cambaleando pelas ruas. Em Madri ocorreu, é verdade, um fenômeno transitório de vandalismo nas praças, que amanheciam repletas de cacos de garrafas. Mas era mais hooliganismo que porre e teve vida curta.

Em vez de matérias sobre cultura africana ou indígena, que de nada servem a não ser para falsificar a história dessas raças, que se crie uma cadeira de Introdução aos Destilados, Fermentados e Afins. Que os adolescentes aprendam que beber pode ser prazeroso sem ser vexaminoso.

Que beber para viver é bom. Mas não para morrer.

Em tempo - A pesquisa do INCA francês foi logo contestada por uma outra, bem mais abrangente, que dizia ser o vinho - e só o vinho entre as bebidas alcóolicas - benéfico para mais de vinte tipos de câncer.