¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, julho 13, 2010
 
BOYE, REGALO
DE LENA LENA



De meus dias de Estocolmo, trouxe três legados daqueles que transformam uma pessoa. Para começar, voltei falando mais uma língua. Continuando, conheci uma das sociedades mais avançadas da época, tanto em organização social como em tecnologia. O que me foi muito útil para avaliar meu país. O terceiro foi mais modesto, mas não menos fundamental. Quando me despedia de Lena Lena no aeroporto de Arlanda, ela deu-me um livro de escritora que eu desconhecia. “Para praticares o sueco e lembrares de mim”.

Como esquecer? Lena Lena e o livrinho foram determinantes em minha vida. Tratava-se de Kalocain, de Karin Boye, uma das mais densas e desconhecidas escritoras suecas. A obra pertence ao gênero que se convencionou chamar de distopias. A autora optou por fugir à vida há mais de cinqüenta anos e a ocasião é oportuna para rever sua obra, seu rosto lindo e seu sorriso terno. Em Estocolmo, estudei cinema e acho que não exagero se afirmo que Boye me fez optar pela literatura.

"Este livro que me proponho escrever parecerá sem sentido para muitos - se ao menos ouso pensar que muitos poderão lê-lo - pois iniciei-o espontaneamente, sem ordens de ninguém, e no entanto nem certamente eu mesmo sei qual é meu objetivo. Quero e preciso, isso é tudo. Pouco a pouco, inexoravelmente, acabamos nos perguntando pelo objetivo e método do que fazemos e dizemos, de modo que palavra alguma caia ao azar, mas o autor deste livro foi forçado a tomar o caminho oposto, em direção ao inútil".

Assim abre seu longo depoimento Leo Kall, o personagem central de Kalocain. Sempre fui fascinado pelas frases iniciais de uma obra de porte, e Boye capturou-me já no primeiro parágrafo. De volta a Pindorama, para não perder meu sueco, decidi traduzir o livro. Caminho em direção ao inútil, como diria Leo Kall. Por um desses estranhos caminhos, sei lá como, quase por milagre, consegui publicá-lo no Rio, pela Companhia Editora Americana. O livro, um libelo contundente contra os milenarismos que empestaram o século, foi solenemente ignorado pela crítica. Além do mais, os críticos não tinham referência alguma sobre Boye e não ousaram emitir opinião alguma.

Mas minha tradução não foi exatamente em direção ao inútil. Logo depois fui chamado a traduzir um outro livro do sueco, Hugo e Josefina, de Maria Gripe. De repente, revelei-me tradutor. Uma editora de São Paulo encomendou-me a tradução de Crônicas de Bustos Domecq, de Borges e Bioy Casares. Ernesto Sábato pediu-me para traduzir suas obras. Tradução puxa tradução e acabei traduzindo Roberto Arlt, José Donoso, Camilo José Cela e outros. O carinhoso presente de minha lena Lena mudou meus rumos. Chamava-se Lena e len, em sueco, significa doce, terno, tenro, suave. A vida é uma caixinha de surpresas. Um pequeno gesto, e nossa vida se transforma.

Volto a Boye. O livro, de certa forma, acabou morrendo. Sumiu das livrarias e não foi reeditado. Teve uma capa equivocada de Eugenio Hirsch, que sugeria erotismo. Quem buscava erotismo se decepcionava e quem buscava boa literatura não o comprava. Mas volta e meia leitores em busca de leituras refinadas me perguntam por Kalocaína. Só posso dizer que está esgotado. Para alguns, enviei fotocópias. Luciana Miashiro, um desses leitores, me fez um nobre presente: devolveu-me o livro digitalizado.

Estou viajando pelas próximas semanas, para rever amigos e amigas, questão de reabastecer a alma. Não é fácil escrever em viagem, especialmente quando se viaja para abraçar pessoas. Para não deixar o leitor à míngua, no melhor estilo de Dostoievski, amanhã vou ressuscitar os antigos folhetins. Em vez do cronista ranzinza, meus leitores terão neste blog a refinada literatura de Boye. Graças à gentileza da Luciana.

Quanto algum fato me provocar uma indignação maior, interromperei o folhetim e voltarei à liça.