¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, julho 09, 2010
 
JORNALISTA ITALIANO FAZ
DO LIMÃO UMA LIMONADA



Tommasso Debenedetti, jornalista freelancer italiano, com um simples subterfúgio, conseguiu transformar um desastre em sucesso. Desde 2006, vinha publicando entrevistas fictícias com celebridades tipo Philip Roth, Gore Vidal, Toni Morrison, E. L. Doctorow, Günter Grass, José Saramago, John Grisham, e os prêmios Nobel Jean-Marie Gustave Le Clézio e Herta Müller. Sem que leitor ou jornalista algum suspeitasse da farsa.

Ocorre que deu um escorregão ao simular em fevereiro passado uma entrevista com Philip Roth, no jornal Libero, na qual o escritor americano considera Barack Obama “antipático, além de ineficaz e deslumbrado pelos mecanismos do poder”. Roth tomou conhecimento por acaso da frase que lhe foi atribuída, ao ser entrevistado por uma jornalista italiana. Subiu nos tamancos:

- Nunca disse algo semelhante! É grotesco. Escandaloso. É o contrário do que penso. Considero que Obama é fantástico. Acho que o ataque a que os republicanos o submetem muito semelhante ao que sofreu Roosevelt. Estou muito irritado com essas declarações que me foram atribuídas. Nunca falei com esse Libero. Desminta tudo. Agora mesmo vou chamar meu agente.

A "entrevista" fez estragos na grande imprensa. Pierluigi Battista, colunista do Corriere della Sera, a citou em um artigo, para felicitar Roth por ter abandonado o barco de Obama em um gesto liberal que teria sido “impensável na jacobina Itália”.

Denunciado pelo escritor americano, Debenedetti saiu pela tangente. Do limão fez limonada. Disse que estava criando um gênero literário, o das entrevistas fictícias. Mas só se proclamou criador de gênero literário após ter sido flagrado. Para jornalistas que nada conhecem da literatura do século passado, de embusteiro passou a ser inovador. Em verdade, não inova coisa alguma.

Em 1932, Giovanni Papini, um dos mais brilhantes escritores italianos – hoje praticamente esquecido – publicou Gog, livro que recomendo vivamente. Gog era um nativo do Havaí, filho de uma mulher indígena e pai desconhecido, mas de raça branca, que o escritor diz ter conhecido em um manicômio. O personagem é impactante:

Era um monstro que devia ter meio século, vestido de verde-claro. Alto, mas sem linha; não tinha um único pelo em toda a cabeça; sem cabelos, sem sobrancelhas, sem bigodes, sem barba. Um bulbo informe de pele nua com excrescências coralinas. A cara era de um escarlate escuro, quase violáceo e larguíssima. Um dos olhos era de um belo celeste um pouco cinza; o outro quase verde com estrias de um amarelo de tartaruga. As mandíbulas eram quadradas e potentes; os lábios, maciços mas pálidos, se entreabriram num sorriso completamente metálico, de ouro.

Não menos insólita é sua biografia:

Aos dezesseis anos, embarcado como boy de cozinha em um vapor americano, chegara a São Francisco e viveu ao léu em vários pontos da Califórnia. Não se sabe como, depois de alguns anos conseguiu reunir alguns milhares de dólares. Tinha, ou o gênio do business ou um demônio a seu lado, porque em pouco tempo a sua fortuna se fez enorme, inclusive para Ohio. Ao terminar a guerra era dos homens mais ricos dos Estados Unidos, o que quer dizer, do planeta. Em 1920 retirou-se, sem grandes prejuízos, de todas suas empresas, e depositou os seus milhões, uns aqui, outros ali, em todos os bancos do mundo.

- Até agora – dizia – tenho sido um galé do dinheiro. Mas de hoje em diante ele ser o meu servidor. Não quero, como os meus semelhantes, ficar murcho para descobrir os meios de gozar.

É preciso ter em conta a mescla perigosa que havia nele: um semi-selvagem inquieto que tinha sob o seu domínio as riquezas de um imperador. Um descendente de canibais que se apoderara, continuando bruto, do mais espantoso instrumento de criação e de destruição do mundo moderno.


Diamante bruto e não polido, dispondo da liberdade que só o dinheiro dá, Gog tem uma visão sarcástica da época em que vive. Sai pelo mundo, a conhecer países e seus grandes homens. Nessas viagens, entrevista Ford, Gandhi, Einstein, Freud, Lênin, Wells, Bernard Shaw, Knut Hamsun, Edison. Sob sua ótica de primitivo, o olhar implacável de Papini sobre as sumidades do século passado.

Ou seja, o gênero de novo nada tem. Com uma diferença. Em Papini, temos um personagem fictício entrevistando pessoas reais. No caso de Debenedetti, temos um jornalista real entrevistando pessoas reais, sem dar ao leitor nenhum indício para intuir que a entrevista é fictícia. É vigarice.

Transcrevo abaixo a visita de Gog a Freud. Com fina e sofisticada ironia, Papini reduz o vienense a um médico frustrado com vocação para a literatura. Daí surge a psicanálise.