¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, julho 14, 2010
 
KALOCAÍNA - I

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo


Este livro que me proponho a escrever parecerá sem sentido para muitos – se ao menos ouso pensar que “muitos” poderão lê-lo –, pois o iniciei espontaneamente, sem ordens de ninguém e, no entanto nem certamente eu mesmo sei qual é meu objetivo. Quero e preciso, isso é tudo. Pouco a pouco, inexoravelmente, acabamos nos perguntando pelo objetivo e método do que fazemos e dizemos, de modo que palavra alguma caia ao azar – mas o autor deste livro foi forçado a tomar o caminho oposto, em direção ao inútil. Pois apesar de meus anos aqui como prisioneiro e químico – serão mais de vinte, penso – terem sido suficientemente cheios de trabalho e pressa, algo me disse não ser isto suficiente e me conduziu e fez vislumbrar um outro trabalho dentro de mim, que eu pessoalmente não tinha possibilidade alguma de descobrir, embora estivesse profunda e dolorosamente interessado nele. Este trabalho estará concluído quando eu tiver escrito meu livro. Percebo também quão ilógicos se apresentam meus escritos aos pensadores racionais e práticos. Mesmo assim escrevo.

Talvez não tivesse ousado antes. Talvez tenha sido o aprisionamento que me tornou frívolo. Minhas condições de vida agora pouco se diferenciam de quando vivia como homem livre. A comida apresenta-se um pouco pior aqui – com isto a gente se acostuma. A maca é um pouco mais dura que minha cama, em casa, na Cidade Química n° 4 – com isto também a gente se acostuma. O pior foi a perda de minha mulher e meus filhos, principalmente porque nada soube nem sei de seus destinos; isto encheu meus primeiros anos de prisão de inquietude e angústia. Mas com o correr do tempo, comecei a sentir-se mais tranquilo que antes e inclusive a gostar mais e mais de minha existência. Aqui nada me inquietava. Não tinha subordinados nem chefes – exceto os vigias da prisão, que raramente me atrapalhavam e apenas se preocupavam em saber se eu tinha seguido as instruções. Não tinha protetores nem concorrentes. Os cientistas com quem às vezes me reunia para acompanhar novas experiências no campo da química, tratavam-me com polidez e objetividade, ainda que condescendentes em razão de minha nacionalidade estrangeira. Sabia que ninguém julgava ter razões para invejar-me. Em suma: de certa forma, podia sentir-me mais livre que em liberdade. Mas junto com a tranquilidade, crescia também em mim este estranho trabalho com o passado, e não posso aspirar a nenhuma calma antes de ter escrito as memórias de um período cheio de significado em minha vida. A possibilidade de escrever me foi dada em razão de meus trabalhos científicos, e o controle se exercia apenas no momento em que eu entregava um trabalho pronto. Posso assim pagar-me esta única alegria, embora talvez seja minha última chance.

Na época em que meu relato começa, eu me aproximava dos quarenta. Se, de resto, preciso apresentar-me, posso talvez falar sobre a imagem que faço da vida. Existem poucas coisas que me digam mais sobre um homem que sua concepção de vida; se a vê como um caminho, um campo de batalha, uma árvore que cresce ou um mar tempestuoso. De minha parte, vejo-a com os olhos ingênuos de um colegial, como uma escada por onde subimos de degrau em degrau, tão rápido quanto possível, com a respiração opressa e os adversários nos calcanhares. Em verdade, eu não tinha adversários. A maioria de meus colegas do laboratório havia dirigido todas as suas ambições ao serviço militar e viam o trabalho diário como uma desagradável interrupção daquele serviço. Pessoalmente, não queria confessar-lhes que estava mais interessado em minha química que no serviço militar, embora estivesse consciente de não ser mau soldado. Seja como for, eu subira em minha escada. Sobre quantos degraus deixara para trás, jamais havia cogitado; tampouco no que de esplendoroso poderia existir no topo. Talvez imaginasse nebulosamente a casa da vida como uma de nossas casas comuns da cidade, por onde se subia do interior da terra até chegar ao terraço, ao ar livre, ao vento e à luz do dia. O que corresponderia à luz ao vento em minha peregrinação pela vida, não faço idéia. Sabia apenas que cada avanço de degrau era indicado por curtos comunicados oficiais de escalões superiores sobre um exame realizado, uma prova superada, uma transferência para um campo de atividades mais significativo. Eu tinha uma longa série destes vitais pontos de partida e chegada atrás de mim, embora nem tantos para que um novo empalidecesse em significado. Por isso eu voltara com uma gota de febre no sangue no curto telefonema que me comunicara que poderia esperar meu chefe no dia seguinte e assim começar experiências com material humano. Amanhã aconteceria então a prova de fogo da minha até agora invenção.

Eu estava tão excitado que me foi difícil começar algo novo durante os dez minutos que ainda restavam de trabalho. Em vez disso, sabotei um bocado do serviço – acredito que pela primeira vez em minha vida – e comecei a instalar antecipadamente a aparelhagem, lenta e cuidadosamente, enquanto olhava sub-repticiamente para ambos os lados, através das paredes de vidro, para ver se alguém me vigiava. Tão logo a campainha anunciou o fim da jornada, avancei rapidamente pelos corredores, entre os primeiros da torrente. Tomei uma ducha rápida, troquei as roupas de trabalho pelo uniforme de lazer, corri ao elevador e parei alguns segundos em cima, na rua. Como havia recebido residência em meu distrito de trabalho, tinha licença de superfície e sempre a aproveitava para dar uma esticada ao ar livre.

Em frente à estação de metrô, ocorreu-me que poderia esperar Linda. Como era bastante cedo, ela certamente ainda não tivera tempo de chegar em casa, cerca de vinte minutos de metrô, da fábrica de alimentos onde trabalhava. Um trem acabara de chegar, e um rio de gente jorrou da terra, estreitou-se entre os portões de saída onde as licenças de superfície eram controladas, e filtrou-se pelas ruas próximas. Além das plataformas agora vazias, além das persianas cinza-montanha e verde-grama levantadas, que em dez minutos poderiam camuflar a cidade, tornando-a invisível, contemplei a multidão formigante de cidadãos-soldados em uniforme de lazer que retornavam para casa, e subitamente me apercebi de que talvez todos alimentassem o mesmo sonho que eu: sonhavam com o caminho mais para o alto.

A idéia fulminou-me. Sabia que antes, durante a época civil, os homens tinham de ser atraídos ao trabalho e fadiga com a esperança de residências mais espaçosas, comida melhor e roupas mais bonitas. Agora nada disso era necessário. O apartamento modelo – um quarto para os solteiros, dois para as famílias satisfazia a todos, desde os mais modestos aos mais merecedores. A comida das cozinhas centrais alimentava tão bem o general como o recruta. O uniforme geral – um para o trabalho, um para o lazer e outro para o serviço militar e policial – era igual para todos, para homem e mulher, superior e subalterno, exceto quanto às distinções de grau. Inclusive este não era mais pomposo para o primeiro do que para o segundo. O desejável em um mais alto grau estava apenas naquilo que simbolizava. Tão altamente espiritualizado, pensei feliz, é cada cidadão-soldado do Estado Mundial, que mal concebe o mais alto valor da vida com forma mais concreta que três divisas pretas no braço – três divisas pretas que são para ela uma garantia, tanto para sua auto-estima quanto para o respeito de outrem. Bem-estar material pode-se ter o suficiente e mais que o suficiente – exatamente por isto suspeito que os apartamentos de doze quartos dos antigos civis capitalistas eram pouco mais que um símbolo – mas o mais sutil de todos, que se persegue sob a forma da distinção de grau, não dá a ninguém mais comida. Ninguém alcança tanta consideração e auto-estima a ponto de não desejar alcançar mais. No mais espiritualizado, no mais etéreo e inacessível de tudo, repousa nossa ordem estabelecida, tranquila e fixa por todos os tempos.

Assim meditava eu na saída do metrô e via como em um sonho o vigia ir e voltar ao longo dos pontiagudos muros do distrito. Quatro trens haviam chegado, quatro vezes a multidão jorrou na luz do dia, quando finalmente Linda passou pelos controles. Apressei o passo e continuamos lado a lado. Naturalmente não podíamos falar devido aos exercícios aéreos das esquadrilhas, que dia e noite não permitiam que se mantivesse qualquer conversa fora de casa. Em todo caso, ela viu minha fisionomia alegre e cumprimentou-me com a cabeça, embora séria como sempre. Até que chegássemos ao prédio residencial e o elevador nos descesse até nosso apartamento, envolveu-nos um relativo silêncio – o ruído do metrô, que sacudia as paredes, já não era tão forte, de modo que se podia falar – mas mesmo assim evitamos qualquer conversa até entrar. Se alguém nos surpreendesse falando no elevador, seria perfeitamente natural a suspeita que discutíamos assuntos que não queríamos que as crianças ou a criada ouvissem. Tais casos haviam ocorrido, quando subversivos e outros criminosos queriam empregar o elevador como local de conspiração; era um lugar adequado, pois por motivos técnicos os olhos e ouvidos da polícia não podiam ser montados num elevador e, além disso, o porteiro geralmente tinha coisas mais importantes a fazer do que correr e escutar nas escadarias. Mesmo assim nos calamos cautelosamente até entrar na sala de estar familiar, onde a criada da semana já havia posto a mesa com a janta e esperava com as crianças, que havia apanhado na creche do prédio. Parecia ser meticulosa e gentil, e nossa amável saudação não dependia apenas de sabermos que ela, no fim de semana, tinha de deixar um relatório sobre a família – uma reforma que se supunha ter melhorado a atmosfera de muitos lares. Uma ambiência de alegria e bem-estar envolvia nossa mesa, principalmente quando Ossu, nosso filho mais velho estava conosco. Ele havia chegado do acampamento infantil, pois era sua noite de ficar em casa.

– Tenho boas novas – disse para Linda, por cima da sopa de batatas – Meu experimento chegou a um ponto tal que amanhã posso começar com material humano, sob a supervisão de um chefe de controle.

– Que achas que será? – perguntou Linda.

Ninguém notou nada, mas sobressaltei-me interiormente com suas palavras. Talvez fossem totalmente inocentes. Nada mais natural que uma esposa perguntar quem seria o chefe de controle do marido. Da boa ou má vontade do chefe de controle dependeria quão longo seria o tempo de provas. Já acontecera inclusive que chefes de controle ambiciosos haviam-se apossado de invenções dos controlados, e eram relativamente poucas as possibilidades de proteção contra isso. Não era, pois de estranhar que alguém da família perguntasse quem seria ele.

Mas percebi um subtom em sua voz. Meu chefe mais próximo, que provavelmente seria meu chefe de controle, era Edo Rissen. E Edo Rissen fora antes empregado na fábrica de alimentos onde Linda trabalhava. Eu sabia ter existido um certo contato entre ambos, e por diversos sinais percebi que ele deixara uma certa impressão em minha mulher.

Com sua pergunta, meu ciúme despertou e renovou-se. Quão íntima fora realmente a ligação entre ela e Rissen? Em uma grande fábrica pode muitas vezes acontecer que duas pessoas se encontrem fora das vistas dos demais, nos depósitos, por exemplo, onde pacotes e caixas impediam a visão através das paredes de vidro, e onde, talvez, para cúmulo de tudo, ninguém estivesse trabalhando no momento... Também Linda tivera sua vez como vigia noturna na fábrica. Rissen podia muito bem ter tido sua ronda na mesma ocasião. Tudo era possível, inclusive o pior: de que era a ele que ela continuava amando, e não a mim.

Naquela época eu pouco me perguntava sobre mim mesmo, sobre o que pensava e sentia ou sobre o que os outros pensavam e sentiam, de modo que isto pouca importância prática tinha para mim. Só agora durante minha solidão de prisioneiro, aquele momento se tornara um enigma, que me obrigava a adivinhar, decifrar e redecifrar. Agora, bem mais tarde, sei que quando buscava ardentemente “certeza” na pergunta sobre Linda e Rissen, eu não queria realmente chegar à certeza da existência de alguma ligação entre eles. Eu queria saber se ela se voltava para outros rumos. Queria chegar a uma certeza que desse fim ao meu casamento.

Teria rejeitado um tal pensamento com desprezo, naquela época. Linda desempenhava um importante papel em minha vida, teria dito então. E era verdade, especulação ou suspeita alguma pudera até então modificar isto. Em significado, ela poderia muito bem competir com minha carreira. Contra minha vontade, prendia-me de forma totalmente irracional.

Pode-se falar do “amor” como um romântico e envelhecido conceito, mas temo que, no entanto exista e desde seu início contenha em si um indescritível elemento doloroso. Um homem é atraído por uma mulher, uma mulher por um homem, e a cada passo que se aproximam, sacrificam algo de si próprios; uma série de derrotas, quando esperam vitórias. Desde meu primeiro casamento sem filhos e, portanto, sem razão de ser – eu experimentara este antegosto. Linda estimulou-o até o pesadelo. Durante os primeiros anos vivi realmente um pesadelo, embora não o associasse a ela: eu estava em meio a uma escuridão intensa iluminado por um holofote; na escuridão sentia o Olho dirigido a mim, e contorcia-me como um verme para escapar-lhe, e me envergonhava como um cão pelos andrajos que vestia. Mais tarde percebia ser isto uma boa imagem de minha situação ante Linda, diante da qual me sentia terrivelmente translúcido, embora tudo fizesse para esconder-me e proteger-me, enquanto ela permanecia o mesmo enigma, denso, quase sobre-humano, mas ternamente inquietante, pois seu enigmatismo lhe dava esta odiosa superioridade. Quando sua boca se comprimia até tornar-se uma linha estreita e vermelha – oh, não! Não era um sorriso, nem de desdém nem de alegria, melhor se diria uma tensão, como quando se distende um arco – e ao mesmo tempo os olhos permaneciam imóveis e grandemente abertos – perpassava-me então sempre o mesmo estremecimento de angústia, e ela sempre me submetia e me atraía impiedosamente, embora eu adivinhasse que jamais se abriria para mim. Creio ser adequado empregar a palavra amor, quando em meio à desesperança nos mantemos unidos um ao outro, como se apesar de tudo um milagre pudesse ocorrer – então a própria angústia adquire uma espécie de valor próprio e se torna uma prova de que ao menos se tem algo em comum: a espera por algo que não existe.

Em torno a nós, víamos os pais separarem-se tão logo suas ninhadas estivessem em idade de ir para os acampamentos infantis – separavam-se e casavam-se novamente para procriar novas ninhadas. Ossu, nosso filho mais velho, tinha já oito anos e ficara um ano inteiro no acampamento. Laila, a mais nova, tinha quatro – mais três anos em casa, portanto. E depois? Separar-nos-íamos e nos casaríamos novamente, na infantil ilusão de que a mesma espera poderia ser menos vã com um outro? Toda a minha razão dizia ser isto uma mentirosa ilusão. Uma única, pequena e ilógica esperança me murmurava: não, não – se fracassaste com Linda foi porque ela desejava Rissen! Ela pertence a Rissen, não a ti! Convence-te de que é em Rissen que ela pensa – assim tudo ficará esclarecido e terás ainda esperança em um novo amor, que tenha sentido.

A pergunta de Linda despertara em mim estas curiosas elucubrações.

– Provavelmente Rissen – respondi, e escutei ansiosamente o silêncio que se seguiu.

– Seria indiscrição perguntar qual é a experiência? – perguntou a criada.

Ela tinha direito de perguntar; de certa forma ela estava ali exatamente para informar o que acontecia em família. E eu não conseguia imaginar o que poderia ser destorcido e usado contra mim, nem mesmo como isso poderia ferir o Estado, no caso de os rumores sobre minha descoberta se espalharem prematuramente.

– É algo que espero possa beneficiar o Estado. Um meio que fará com que todo e qualquer homem confesse seus segredos, tudo aquilo que antes o forçou a calar-se, por vergonha ou medo. Você é desta cidade, cidadã-soldado?

Acontecia, vez por outra, encontrarem-se pessoas trazidas de outros lugares em época de falta de braços, e que por isso não tinham da cultura geral das Cidades Químicas senão algumas migalhas catadas na idade adulta.

– Não – disse ela enrubescendo. – Sou de fora.

Explicações mais detalhadas de onde se vinha eram estritamente proibidas, pois poderiam ser aproveitadas no serviço de espionagem. Naturalmente, ela enrubescera por isso.

– Então não penetrarei muito no aspecto químico da composição ou fabricação. Além do mais, isto talvez deva ser evitado, pois o assunto não deve cair em mãos privadas em circunstância alguma. Mas você certamente já ouviu falar em como se empregava antigamente o álcool como meio de embriaguez e em suas consequências.

– Sim – disse ela. – Sei que tornava os lares infelizes e destruía a saúde e nos casos mais graves produzia estremeções em todo o corpo e alucinações.

Reconheci as palavras elementares dos manuais escolares e sorri. Ela não tivera realmente tempo de adquirir a cultura geral das Cidades Químicas.

– Exato – disse eu. – Assim era nos casos mais graves. Mas antes de chegarem a este ponto acontecia muitas vezes que os bêbados deixavam escapar indiscrições, traíam segredos e cometiam ações temerárias, pois sua capacidade de vergonha e medo estava enfraquecida. Este é o efeito de minha droga, acho eu, pois ainda não a experimentei. Sua diferença é que não é bebida, mas injetada diretamente no sangue e, além disso, sua composição é totalmente outra. Os efeitos desagradáveis de que você fala não ocorre – pelo menos se não forem aplicadas doses excessivas. Uma leve dor de cabeça é tudo que as cobaias sentem logo após, e não acontece, como às vezes ocorria com os alcoólatras, que a pessoa esqueça o que disse. Certamente você percebe a importância de minha descoberta. Nem nossos mais íntimos pensamentos são mais nossos – como até agora pensávamos, erroneamente.

– Erroneamente?

– Sim, erroneamente. Dos pensamentos e sentimentos nascem as palavras e ações. Como poderiam então os pensamentos e sentimentos serem algo privado? O cidadão-soldado não pertence totalmente ao Estado? A que pertenceriam então seus pensamentos e sentimentos senão ao Estado? Até hoje só não foi possível controlá-los – mas agora o meio foi encontrado.

Ela lançou-me um rápido olhar, mas baixou-o logo. Sua fisionomia não se modificou, mas tive a impressão do que suas cores empalideceram.

– Você não tem a temer, cidadão-soldado – disse eu para reanimá-la. – A intenção não é curar todas as pequenas paixões e antipatias particulares. Se minha descoberta caísse em mãos privadas, então sim, pode-se imaginar o caos que se estabeleceria! Mas isto naturalmente não acontecerá. A droga servirá a nossa tranquilidade, à tranquilidade de todos, à tranquilidade do Estado.

– Não tenho medo, não tenho nada a temer – respondeu ela um pouco friamente, quis apenas ser gentil.

Mudamos de assunto. As crianças contaram o que havia ocorrido durante o dia em seu quarto. Haviam brincado na caixa de brinquedos – um bem esmaltado tonel de uns quatro metros quadrados e um de profundidade, onde se podia não apenas jogar bombas de brinquedo, incendiar florestas e telhados projetados de material inflamável como também organizar um combate naval em miniatura, bastando para isso encher a caixa com água e municiar os pequenos canhões da frota com o mesmo explosivo leve empregado nas bombas de brinquedo; existiam inclusive botes torpedeiros. Desta forma se proporcionava uma visão estratégica às crianças e, ao mesmo tempo, uma diversão de primeira ordem. Às vezes eu invejava meus filhos por terem nascido em meio a brinquedos tão sofisticados – na minha infância o explosivo leve não fora ainda descoberto – e não entendia muito bem por que mesmo assim eles desejavam ardentemente completar sete anos e ir para os acampamentos infantis, onde os exercícios eram bem mais semelhantes à instrução militar, e onde se vivia dia e noite.

Muitas vezes pareceu-me ser esta nova geração mais realisticamente ajustada que nós em nossa infância. Justamente naquele dia eu receberia uma nova prova disto. Como era uma noite em família, quando nem Linda nem eu tínhamos serviço policial e militar, e Ossu estava nos visitando – assim se completava nossa vida íntima familiar –, eu havia imaginado algo para divertir as crianças. No laboratório eu comprara uma pequena porção de sódio, que pensara deixar flutuar na água com sua chama violeta-pálida. Enchemos o tonel apagamos as luzes e nos reunimos todos em torno de minha pequena curiosidade química. Pessoalmente eu ficara maravilhado com o fenômeno quando, na infância, meu pai o mostrara para mim, mas para meus filhos constituiu-se um solene fiasco.

Ossu, que já fizera fogo por conta própria, atirou com pistola e lançou pequenos petardos semelhantes a granadas de mão – enfim, que ele não apreciasse a pequena chama pálida seria talvez muito natural. Mas que nem mesmo Laila, com quatro anos, não se interessasse por uma explosão se esta não custasse a vida de alguns inimigos deixou-me estupefato. A única que parecia fascinada era Maryl, a do meio. Ela estava quieta e sonhadora como sempre e seguia o crepitar da chama com olhos grandemente abertos, que lembravam os de sua mãe. E embora sua atenção me desse um certo consolo, inquietava-me ao mesmo tempo. Ocorreu-me clara e nitidamente serem Ossu e Laila as crianças dos novos tempos. Seu ajustamento era o certo e positivo, enquanto o meu era a manifestação de um romântico à antiga. E apesar da satisfação que ela me dera, desejei subitamente que Maryl fosse mais semelhante aos outros. Era de mau augúrio que ela assim permanecesse à margem do desenvolvimento sadio de sua geração.

O tempo passava e chegou a hora de Ossu retirar-se para o acampamento infantil. Se tinha vontade de ficar mais tempo, ou se tinha medo da longa viagem de metrô, nada demonstrou. Com apenas oito anos já era um disciplinado cidadão-soldado. Em mim, ao contrário, perpassou uma ardente onda de saudade daquele tempo em que os três engatinhavam em suas pequenas camas todas as noites. Um filho é sempre um filho, e sempre estará mais próximo de seu pai que as filhas. Mesmo assim eu não ousava pensar naquele dia, quando também Maryl e Laila sairiam de casa e só voltariam duas vezes por semana para visita. Em todo caso, cuidei-me para que ninguém notasse minha fraqueza. As crianças não se queixariam jamais de mau exemplo, a criada não teria de relatar uma atitude fraca do chefe da família, e Linda – Linda menos que todos! Jamais quis ser desprezado por alguém, principalmente por Linda, que jamais fora fraca.

As camas da sala de estar familiar foram puxadas da parede para as pequenas, e Linda preparou-as. A criada acabara de colocar os restos da janta e porcelanas no elevador das refeições e aprontava-se para sair, quando lhe ocorreu algo.

– A propósito – disse –, chegou uma carta para o senhor, meu chefe. Deixei-a em seu quarto.

Um pouco surpresos, Linda e eu examinamos a carta, um comunicado de serviço. Fosse eu o responsável geral pelas criadas, certamente a teria advertido por isso. Se ela realmente esquecia tudo, ou se propositalmente negligenciara isto, sua atitude era tão descuidada como não se informar do conteúdo de um comunicado de serviço – e ela tinha perfeitamente o direito a isso. Mas ao mesmo tempo perpassou-me um pressentimento de que a carta poderia ter um mau conteúdo que eu deveria agradecer seu desleixo.

A carta era do Sétimo Departamento do Ministério de Propaganda. E para esclarecer-lhe o conteúdo, preciso voltar atrás no tempo.