¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, julho 16, 2010
 
KALOCAINA - III

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo



Eu segurava ainda na mão a notificação daquela noite. Quem me denunciara não precisava necessariamente ter sido o homenzinho. Em todo caso, denunciado eu já estava. No papel lia-se:

“Cidadão-soldado Leo Kall, Cidade Química n° 4. – Depois que o Sétimo Departamento do Ministério de Propaganda examinou o conteúdo de sua palestra na festa de despedida dos operários convocados do Acampamento Juvenil, resolveu-se comunicar-lhe o seguinte:

Sendo um guerreiro totalmente devotado sempre mais efetivo que um relutante, precisa então um feliz cidadão-soldado – que nem para si mesmo nem para outros admite que sacrifica algo – reconhecer um si maior valor que em um inferior, que sofre o peso de seu assim chamado sacrifício, mesmo escondendo sua inferioridade; e consequentemente não tempos motivo algum para exaltar cidadãos-soldados que tentam esconder relutância, abatimento e sentimentalismo sob uma controlada máscara de alegria senão aqueles que, inteiramente alegres, nada têm a esconder, enquanto que o desmascaramento dos relutantes é uma atitude valiosa para o bem do Estado.

Esperamos o mais rapidamente possível sua autocrítica, ante o mesmo auditório que então o escutava, caso seja possível reencontrá-lo reunido; em caso contrário, na rádio local.

Sétimo Departamento do Ministério de Propaganda”.

Minha reação foi tão colérica que mais tarde envergonhei-me diante de Linda. Receber isto exatamente hoje, em plena alegria da vitória! Em meio às minhas maiores esperanças, ser atingido por tal golpe! Fora de mim como estava, disse várias coisas não refletidas que mesmo hoje, não obstante minha boa memória, encontro com dificuldade em lembrar: que eu era um homem arrasado, minha carreira estava destruída, meu futuro sem glória, minha maior descoberta se volatilizara com isto, que agora constaria de todos os registros secretos de todas as seções de polícia em todo Estado Mundial, e assim por diante. E quando Linda tentou consolar-me, acreditei no primeiro momento que ela apenas cogitava de melhor forma de abandonar o barco que naufragava, apesar de as crianças estarem ainda em idade de casa.

– Logo todos saberão que as palestras que costumo proferir são subversivas, disse eu amargamente. Deves exigir divórcio o quanto antes, sem se preocupar se as crianças são ainda pequenas. Para elas será melhor tornarem-se órfãos a conviverem com um subversivo como eu...

– Assim tu exageras – disse Linda calmamente. (Lembro ainda até as próprias palavras. Não foi a calma, nem o maternalismo de seu tom de voz que me convenceu de sua sinceridade, mas sim o pesado, quase apático cansaço.) – Assim tu exageras. Quantos eminentes cidadãos-soldados pensam que não tiveram anotações sobre si alguma vez, e mais tarde redimiram-se! Não lembras todas as autocríticas que ouvimos no rádio, às sextas-feiras, entre às 20 e 21 horas? Deves entender de uma vez por todas que não é a perfeição que faz de ti um bom cidadão-soldado, muito menos a perfeição em tais questões, onde a ética estatal ainda está por ser estabelecida! Antes de tudo é a capacidade de renunciar ao teu ponto de vista e dedicar-te ao correto.

Por fim acalmei-me e comecei a compreender que ela tinha razão. Em meu estado emocional prometi tanto a ela como a mim mesmo utilizar-me da hora radiofônica de autocríticas tão cedo quanto o possível. Comecei inclusive a fazer imediatamente uma minuta de minha futura alocução.

– Estás exagerando de novo – disse Linda, que se curvava sobre meus ombros para ler o que eu escrevia – Não deves ficar arrasado, mas tampouco deves agir como uma borracha que se pode distender a qualquer hora; então te tornas suspeito de golpear de volta, em um momento de descuido. Acredite-me, Leo, tais coisas devem ser escritas quando não se está tão revoltado como estás agora.

Ela tinha razão, e eu era-lhe agradecido por tê-la comigo. Era inteligente, inteligente e forte. Mas por que parecia tão cansada?

– Não estás doente, Linda? – perguntei preocupado.

– Por que eu estaria doente? Tivemos exame médico na última semana. Recomendaram-me um pouco de sol ao ar livre; fora isso não havia problema algum comigo.

Levantei-me e abracei-a.

– Tu não podes morrer e me abandonar. Preciso de ti. Deves ficar comigo.

Paralelo a meu medo de ficar só, corria um pequeno fio de esperança: sim, por que não – por que não poderia ela morrer – não seria esta a melhor solução para o problema? Mas eu não queria aceitar isso. E apertei-a fortemente contra mim, numa espécie de fúria impotente.

Deitamo-nos e apagamos a luz. Minha ração mensal de soníferos terminara já há muito tempo.

Mesmo se seu doce calor e perfume, que lembrava folhas de chá, não me tivessem envolvido em ondas sob as cobertas, eu a teria desejado aquela noite, numa proximidade mais próxima que aquela que o contato superficial pode dar. Os anos me haviam transformado. Em minha juventude, meus sentimentos eram uma espécie de suplemento, um companheiro exigente que precisava ser satisfeito para que, livre dele, eu pudesse ocupar-me de outras coisas, ou ainda, um orgulhoso instrumento de prazer, mas não precisamente uma parte daquilo que eu chamava de mim mesmo. Agora isto não mais ocorria. Perfume e doçura e prazer não eram mais as únicas coisas que eu desejava possuir. A meta de meus sentidos inflamados era algo de bem mais difícil acesso, era Linda, que em certos momentos rápidos brilhava atrás dos olhos imóveis e grandemente abertos, sob o arco vermelho e contraído da boca, que se deixara entrever em sua cansada inflexão de voz, em seus calmos e inteligentes conselhos. E enquanto meu sangue seguia seu caminho pelas veias, virei-me para o outro lado e abafei um suspiro. Disse a mim mesmo que era superstição e nada mais o que eu exigia da convivência entre um homem e uma mulher, algo tão supersticioso como quando os selvagens dos tempos pré-históricos comiam o coração de seus inimigos valentes para se tornarem partícipes de sua coragem. Não existia ato mágico algum que pudesse dar-me a chave de direitos de proprietário ao jardim das delícias que Linda me escondia.

Na parede, o olho e o ouvido da polícia permaneciam ativos, tanto na claridade como na escuridão. Ninguém poderia julgá-los senão necessários: que antro de espionagem e conspirações poderia tornar-se o quarto dos pais, ainda mais quando também era utilizado como sala de visitas! Mais tarde, ao tomar um contato mais íntimo com a vida familiar de diversos cidadãos-soldados, fui forçado a associar os olhos e ouvidos da polícia com a insatisfatória curva de naturalidade no Estado Mundial. Mas não julgava ser por esta razão que agora meu sangue se acalmava tão facilmente. Pelo menos, antes, jamais fora por isso. Nosso Estado Mundial não tinha absolutamente uma visão ascética da sexualidade, pelo contrário, era necessário e honroso engendrar novos cidadãos-soldados, e tudo se fazia para que homens e mulheres desde a maturidade tivessem a oportunidade para cumprir seu dever neste sentido. No início, eu nada abjetava que funcionários e posições mais elevadas constatassem vez por outra que eu era homem. Isto se tornou inclusive um estímulo. Sobre nossas noites anteriores se estendera um fulgor de imagens festivas, pelas quais fomos solenemente tomados e conscientizados da execução de um ritual aos olhos do próprio Estado. Mas uma modificação se introduzira ao correr dos anos. Enquanto anteriormente, mesmo em minhas mais íntimas ocupações, eu me preocupava em como era avaliado pelo Poder, que também se utilizava do olho na parede, agora este poder se transformava mais e mais num peso embaraçoso exatamente naqueles instantes em que mais selvagemente desejava Linda e ansiava pelo inatingido e inatingível milagre, que faria de mim senhor de seus mistérios íntimos. O olho, que me preocupava, exista ainda agora era a própria Linda. Comecei a pressentir que meu amor havia tomado um indevido caráter privado, e isto torturava minha consciência. A finalidade do casamento era os filhos! Nada tinha a ver com sonhos supersticiosos, com chaves e dominação! Talvez essa tendência perigosa em meu casamento fosse uma razão para divorciar-me. E indaguei-me se outros divórcios em torno a nós não teriam as mesmas razões...

Decidi-me então a dormir, mas não pude. A carta do Ministério de Propaganda começou a girar em torno de minha cabeça, e eu não sabia mais para que lado virar-me.

Um guerreiro totalmente devotado é mais efetivo que um relutante, isso é lógico, evidente. Mas que se vai fazer com os relutantes? Como obrigá-los à devoção total?

Uma lúgubre descoberta: eu estava aqui deitado sentindo angústias pelos relutantes, como se fosse um deles. Daqui por diante, não permitiria que isso continuasse. Não queria ser relutante, como cidadão-soldado eu era absolutamente devotado, sem um pingo de perfídia ou traição. Os inúteis deveriam ser aleijados, inclusivo ela, a mãe magra e autocontrolada da festa. Morte aos relutantes! Seria daqui por diante minha palavra de pensamento. – Respondi-lhe: se a situação não melhorar, me divorcio. Mas só depois de as crianças atingirem a idade de sair de casa.

Subitamente uma idéia inundou-me de discernimento e alívio: minha própria descoberta coincidia exatamente com as intenções da carta do Sétimo Departamento. Eu não havia falado pessoalmente com a criada nesse sentido? Eu seria acreditado e perdoado em função de minha descoberta, meu comportamento era leal, e isto pesaria bem mais que algumas palavras irrefletidas ditas em uma festa sem importância. Apesar de tudo eu era um bom cidadão-soldado e poderia tornar-me ainda melhor.

Antes de adormecer, sorri para mim mesmo ante uma tranquilizante e cômica fantasia, uma dessas imagens caprichosas que costuma emergir na consciência exatamente antes de adormecer-se: vi que o homenzinho feio e vivaz da festa também tinha um comunicado na mão e suava frio – o grandalhão de cabelos vermelhos o havia denunciado por suas tentativas de dificultar a alegria e denegrir as promoções do Estado. O que era realmente pior...