¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, julho 18, 2010
 
KALOCAINA - V

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo




Temia que minhas palavras não se dirigissem propriamente ao anestesiado, que justamente por seu torpor se mantinha certamente inacessível a razoamentos, mas a Rissen antes de mais nada, para que ele soubesse onde eu me situava.

– Claro que fui voluntariamente – murmurou n° 135 surpreso de desconcertado. Claro que sim, mas não sabia que era assim como é. Eu supunha ter de sofrer, mas de uma outra forma, de um modo mais digno, e de morrer, mas de uma vez, e com entusiasmo. Não dia e noite, pouco a pouco. Eu acreditava ser lindo morrer. Mas não sabia que se morria agitando os braços. Estertorando. Certa vez, vi alguém morrer na Casa: ele agitava os braços e estertorava. Foi pavoroso. Mas não era apenas pavoroso. Aquilo não pode ser imitado. Depois disso, pensei o tempo todo em como seria bom comportar-se assim uma única vez. Precisa-se fazê-lo, não se pode impedi-lo. Se fosse voluntariamente, seria inadmissível. Mas não é voluntário. Ninguém pode impedir-nos. Agimos assim, e pronto. Ao morrer, podemos nos comportar de qualquer jeito, sem que alguém possa impedir-nos.

Eu retorcia nas mãos um tubo de vidro.

– O homem deve ser de alguma forma perverso – disse baixinho a Rissen. – Um cidadão-soldado sadio não reage assim.

Rissen não respondeu.

– Você não se envergonha de jogar a responsabilidade... – comecei a falar, um pouco irritado, para a cobaia. Percebi que Rissen lançou-me um olhar demorado, frio e divertido ao mesmo tempo, ao notar como enrubesci ante a idéia de que ele certamente vira que eu tentava fazer-me importante em sua presença. (Um pensamento injusto, aliás). Em todo caso, eu devia completar a frase e continuei num tom de voz significativamente mais suave: –... Para outros pelo fato de que você escolheu uma profissão que mais tarde descobriu não lhe servir?

N° 135 não reagiu ao tom de voz, mas à pergunta.

– Outros? – perguntou. – Eu mesmo? Mas eu não quero. Apesar de ser verdade, eu queria. Éramos dez os que se inscreveram em minha seção, mas do que em qualquer outra de todo o Acampamento Juvenil. A coisa irrompeu como um furacão no acampamento. Muitas vezes perguntei-me como se originou. Tudo desembocava no Serviço Voluntário de Cobaias. Nos primeiros anos eu ainda pensava: isto é nobre. Acabamos nos inscrevendo. E quando olhávamos um para o outro, mal conseguíamos vislumbrar um ser humano. As faces, entendem? Como fogo. Não carne e sangue. Santas, divinas. Nos primeiros anos pensei: vamos viver algo mais além do que qualquer comum mortal pode viver, e agora estamos pagando o devido, disso estamos sabendo, depois do que pudemos ver... Mas não aguentamos mais. Eu não aguento mais. Não tenho mais memória, ela me foge, cada vez para mais longe. Antes brilhava às vezes inesperadamente, mas cada vez que a busco (e preciso buscá-la para encontrar novamente o sentido de minha vida), noto que ela não mais me responde, fugiu para muito longe. Creio tê-la exaurido por forçá-la tanto. Às vezes deito-me sem dormir e cogito de como seria minha vida, se fosse a de um homem comum, se eu pudesse experimentar um outro grande momento uma vez mais, ou talvez se não o tivesse experimentado ainda, ou se toda esta grandiosidade pudesse espalhar-se pela vida, então tudo faria sentido, se, enfim, tudo pelo menor não tivesse passado tão inexoravelmente. Precisa-se de um agora, entendem, não apenas de um momento desaparecido que se reviverá pela vida fora. Impossível suportar tudo isto, embora uma vez tenhamos consentido... Nos envergonhamos. Envergonhamo-nos por temos traído o único momento na vida que teve algum valor. Trair. Por que se trai? Quero apenas ter uma vida comum para reencontrar-lhe o sentido. Eu me sobrecarreguei. Não aguento. Amanhã registro minha renúncia e acabo com isso.

O homem relaxou-se um pouco. E ainda uma vez quebrou o silêncio.

– Será possível encontrar-se um tal momento uma vez mais... Quando se morre? Pensei muito nisto. Eu morreria com prazer. Se não se tem mais nada na vida, ao menos a morte se pode ter. Quando se diz: eu não suporto mais, quer-se dizer: eu não suporto mais viver. Não se pensa: eu não suporto morrer, pois isto se suporta, morrer se suporta sempre, pois então podemos ser como queremos...

Calou-se e permaneceu quieto, recostado no espaldar da cadeira. Uma palidez esverdeada começou a espalhar-se em seu rosto. O corpo estremeceu quase imperceptivelmente num rápido soluço. As mãos escorregaram tateando ao longo dos braços da cadeira, e o homem todo parecia despertar, nervoso e com náuseas. Nada surpreendente, pois tomara uma dose dupla. Ofereci-lhe algumas gotas de calmante em um copo de água.

– Ele voltará logo a si – disse eu. – Está se sentindo um pouco mal, pois os efeitos estão cessando. Depois tudo passa. De certa forma terá de enfrentar agora seu mais desagradável trabalho: recolher-se a seu medo e sentimento de vergonha novamente. Julgo que vale a pena observá-lo.

Em verdade, Rissen não tirava os olhos de n° 135, com uma expressão como se fosse ele e não a cobaia quem se envergonhava. O homem a nossa frente, de fato, não nos ofereceria nenhuma visão encorajadora. As veias da têmpora inchavam e latejavam, e os músculos da comissura dos lábios se contraíam num horror reprimido, de espécie visivelmente pior do que a que ele escondia ao entrar na sala. Mantinha os olhos convulsivamente fechados, como se esperasse que, com o transcurso do tempo, a clara imagem guardada na memória se transformasse num sonho mau.

– Ele se lembrará de tudo que aconteceu? – perguntou-me Rissen em voz baixa.

– Temo que de tudo. Mas ainda não sei se devemos julgar isto uma vantagem ou um prejuízo.

Com visível aversão, finalmente, a cobaia decidiu-se a abrir os olhos, de modo a apenas poder seguir tateando pelo soalho. Curvado e inseguro, afastou-se alguns passos da cadeira sem ousar olhar nenhum de nós na face.

– Devo agradecer-lhe pelo serviço prestado - disse e sentei-me na mesa. (Agradecimento de praxe, ao qual o interpelado deveria responder: “Apenas cumpri minha obrigação”, mas nem mesmo um formalista, como eu naquele tempo, tinha a coragem de seguir à risca as convenções, no caso de cobaias após uma experiência). – Escreverei tudo isto em um atestado, e você poderá receber a indenização na caixa quando quiser. Vou colocá-lo na classificação 8: prejuízos moderados sem danos consequentes. Praticamente não se pode falar em dor ou mal-estar, de modo que devia colocá-lo na 3. Mas me parece que você, humm, como direi? Sente-se um pouco envergonhado.

Apanhou o papel descuidadamente e avançou cambaleante até a porta. Parou indeciso alguns segundos, voltou-se subitamente e gaguejou:

– Devo confessar que não entendo o que aconteceu comigo. Era como se estivesse inconsciente e dissesse coisas que de forma alguma penso. Duvido que alguém goste mais de seu serviço do que eu e jamais me ocorreria a idéia de abandoná-lo. Espero seriamente que tenha mais chances de demonstrar minha boa-vontade sofrendo as mais difíceis experiências pelo bem do Estado.

– É bom que você fique à nossa disposição até sentir sua mão curada – disse eu sem pensar muito no assunto. – Caso contrário seria difícil ser designado para outro trabalho. Fora isto, que mais você aprendeu? Pelo que sei, não se costuma desperdiçar instrução extraordinária com nenhum cidadão-soldado, e um homem em sua idade não deve ser jogado em nenhuma outra área, principalmente pelo fato de que não se pode pensar em espécie alguma de “invalidez” na profissão que você escolheu...

Até hoje não sei se falei com arrogância e superioridade. O fato é que deixei transparecer uma visível aversão em relação à minha primeira cobaia. Suponho ter razões suficientes para um tal atitude: a covardia e a irresponsabilidade que o homem escondia sob uma máscara de coragem e espírito de sacrifício, para agradar seus chefes. De fato, a orientação geral do Sétimo Departamento fez-me ferver o sangue. Tratava-se, no caso, de covardia dissimulada; pude constatar pessoalmente quão odiosa era, embora eu não notasse então quando se tratava de desespero dissimulado. O que, pelo contrário, eu não via claramente era uma outra razão para minha hostilidade, uma que só mais tarde descobri e entendi: inveja crescente. Sua curta e entusiástica caminhada do acampamento juvenil ao escritório de propaganda no dia em que se inscrevera no Serviço Voluntário de cobaias – sim, isto eu lhe invejava. Teria um momento assim abrandado minha sede inextinguível, que eu inutilmente tentar saciar com Linda? Embora não chegasse a completar tais pensamentos, sentia que o homem era um agraciado, mas ingrato, e isto me tornava implacável.

Rissen, por sua vez, comportou-se de forma a deixar-me estupefato. Dirigiu-se a n° 135, pôs-lhe a mão nas espáduas e disse, em um tom tão caloroso que dificilmente alguém empregaria com adultos, especialmente entre homens, senão quando uma mão muito carinhosa fala a seus filhos pequenos:

– Não tenha mais medo. Você sabe muito bem que nada pessoal sai daqui. É como se nunca tivesse sido dito.

O homem levantou os olhos timidamente, virou-se com rapidez e desapareceu porta a fora. Penso ter entendido seu embaraço. Fosse ele um bocado mais orgulhoso, pensei, certamente teria cuspido na face de um chefe que se comportava tão familiarmente em relação a um subordinado. E logo após pensei: como se pode reverenciar e obedecer a um chefe assim? Aquele que ninguém precisa temer tampouco pode exigir qualquer respeito naturalmente devido, pois deferência significa um reconhecimento de força, superioridade, poder – e força, superioridade e poder são sempre perigosos para a convivência.

Estávamos sós, Rissen e eu, e uma prolongada quietude caiu sobre a sala. Eu não gostava das pausas de Rissen. Não eram repouso nem trabalho, mas algo intermediário.

– Eu sei o que o senhor pensa, meu chefe – disse eu finalmente para interromper a pausa. – O senhor pensa que isto não prova nada. Eu poderia ter instruído o homem anteriormente. O que ele disse era de fato pessoalmente comprometedor, mas não passível de punição. Não é isto o que o senhor pensa?

– Não – disse Rissen, parecendo ter despertado. – Não, não penso isto. Ficou perfeitamente claro que o homem disse diversas coisas que pensava, mas que não queria dizer nem à custa de sua vida. Não há dúvidas que era verdadeiro, tanto o que confessou como a vergonha posterior.

Em meu próprio interesse deveria estar contente por sua credulidade. Mas estava irritado, pois julgava tudo ter sido fácil demais. Em nosso Estado Mundial, onde cada um de nós cidadãos-soldados, desde os tenros anos, era educado para um rígido autocontrole, não seria de todo impossível que n° 135 tivesse desempenhado uma grandiosa interpretação, embora acidentalmente não parecesse ser este o caso. Mas calei minha crítica e apenas respondi:

– Seria indisciplina se eu propusesse continuarmos?

O estranho homem pareceu não ter notado minha pergunta.

– É uma descoberta misteriosa – disse pensativo. – Como chegou até ela?

Complementei experiências precedentes. Uma droga com efeitos semelhantes foi descoberta há cerca de cinco anos, mas tinha efeitos tóxicos secundários, que as cobaias acabavam – quase sem exceção – nos hospícios, mesmo quando utilizadas uma única vez. O descobridor destruiu um bom número de pessoas com ela e recebeu advertências tão severas que tudo foi suspenso. Agora consegui neutralizar os efeitos secundários. Concordo, eu estava de fato muito excitado para ver como as coisas correriam na prática...

E rapidamente, quase sem continuação, acrescentei:

– Espero que minha descoberta receba o nome de Kalocaína, por ter sido eu a descobri-la.

– Claro, claro – disse Rissen com indiferença. – Você já pensou no grande significado que ainda terá sua descoberta?

– Perfeitamente. Quando a necessidade é premente, a solução surge logo. Como o senhor sabe, os falsos testemunhos começam a inundar os tribunais. Dificilmente se instrui um processo onde os depoimentos das diferentes testemunhas não se contradigam uns aos outros, e de uma forma que não pode absolutamente depender de erro ou negligência. Do que depende isto, ninguém conseguiu atinar, mas acontece.

– Será assim tão difícil? – perguntou Rissen enquanto tamborilava na mesa de uma forma que me irritava. – Será realmente tão difícil descobri-lo? Permita-me uma pergunta, você não precisa respondê-la, se não quiser, mas acha que o perjúrio é maléfico em toda e qualquer circunstância?

– Naturalmente que não – respondi um tanto agastado. – Não, se o bem do Estado o exige. Mas não se pode afirmar isto de um processo qualquer.

– Sim, mas reflita – disse Rissen maliciosamente, inclinando a cabeça. – Não é para o bem do Estado que um explorador é apanhado, embora talvez seja inocente justamente daquilo que é acusado? Não é para o bem do Estado que meu inútil, pernicioso e antipático inimigo é preso, mesmo que nada tenha feito de punível ante a lei? Ele exige consideração, evidentemente, mas que direito tem o particular à consideração?

Eu não sabia precisamente até onde ele queria chegar, e o tempo corria. Apertei rapidamente a campainha chamando a próxima cobaia, e enquanto lhe aplicava a injeção, respondi:

– Em todo caso está provado que isto é um abuso sem proveito algum para o Estado, pelo contrário. Minha descoberta faz deste problema um brinquedo. As testemunhas podem agora ser controladas, e mais ainda, isto é supérfluo, pois os criminosos confessam alegremente e sem reservas, após uma pequena dose. Conhecemos as inconveniências de terceiro grau, mas, veja bem, não critico o método empregado enquanto não tivermos outro à disposição; não podemos circular prazerosamente e sentirmo-nos solidários com criminosos quando sabemos não ter peso algum na consciência...

– Você acha então que tem uma consciência excepcionalmente sólida – disse Rissen secamente. – Ou estaria apenas brincando? Minha experiência é outra, a de que nenhum cidadão-soldado acima dos quarenta tem a consciência exatamente limpa. Durante a juventude, alguns têm, mas depois... Ademais, você não tem talvez mais de quarenta?

– Não, não tenho – respondi tão calmo quanto podia, felizmente voltado para a nova cobaia, não precisando olhar Rissen de frente. Estava revoltado, em princípio não por suas insolências. O que me irritava sumamente eram suas afirmações genéricas. Ele pintara uma situação intolerável: todo cidadão em idade madura portara uma consciência suja crônica! Se bem que não expressasse diretamente isto, senti obscuramente suas afirmações como um ataque aos valores que eu supunha mais sagrados.

Ele certamente observou a reserva em meu tom de voz e entendeu que fora longe demais. Continuamos trabalhando sem mais palavras senão as absolutamente necessárias e objetivas.

Quando tento lembrar as experiências seguintes, vejo que elas não mais têm os mesmos contornos nítidos, as mesmas cores e vida que a primeira. Esta fora naturalmente a mais surpreendente, mas eu ainda não podia sentir-me totalmente seguro de que meu método se mostraria sempre eficaz, embora o tivesse sido na primeira vez. Suspeito que o que me incomodava era minha indignação contra Rissen. Por mais minuciosamente que trabalhasse, não utilizava mais que a metade de minha atenção, e isto talvez por que este trabalho não me deixava tão profundas raízes na memória como a primeira experiência o fizera. Por isso não me preocupo em descrever detalhes. É-me suficiente poder reproduzir a impressão fundamental.