¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, julho 27, 2010
 
KALOCAINA - XIV

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo




Rissen calou-se, sombrio e pensativo. Era-lhe muito difícil objetar algo à minha pouco original argumentação, mas eu tinha certeza – e nela me comprazia – de que sua alma civilista eriçava-se de fúria.

Karrek pulara da cadeira e ia e vinha pela sala. Dava-me a impressão de não escutar muito atentamente meus argumentos, e isto me magoava. Quando acabei, disse um pouco impaciente:

– Muito bem, ótimo. O fato é, no entanto, que até aqui, pelo que sei, jamais mantivemos lutas contra “espíritos”. Deixamos que assombrem o reino irreal ao qual pertencem. Quando as pessoas começam a cochichar ao pé do ouvido nas mesas dos refeitórios ou deixam de assistir às festas oficiais, isto pelo menos merece uma observação especial, mas “espíritos” – não, obrigado...

– Antes não tínhamos meios para este controle, objetei. A kalocaína nos dá a possibilidade de controlar tudo que se passa nos sentidos.

Mesmo ante este argumento, o que lhe entrava por uma orelha parecia sair pela outra.

– Qualquer um poderia ser condenado com isto – disse Karrek um tanto mal-humorado.

Parou subitamente, inquieto, abatido, ao que parece, pelo próprio peso de suas palavras.

– Qualquer um poderia ser condenado com isto – repetiu –, mas desta vez em voz suave, baixa, infinitamente lenta. Em todo caso, talvez você não esteja errado, pois lá no fundo... Lá... No fundo...

– Mas como o senhor próprio disse, meu chefe – gritou Rissen espantado –, qualquer um poderia...

Tampouco Rissen foi ouvido. Karrek continuou a caminhar com longas passadas e com sua estranha cabeça mongólica, os olhos saltados fechando-se aos poucos.

Eu queria ser-lhe útil, e lhe contei, embora um pouco envergonhado, a reprimenda que recebera do Sétimo Departamento do Ministério da Propaganda. Isto finalmente despertou-lhe a atenção.

– Sétimo Departamento do Ministério da Propaganda, é? – disse ele pensativo. – Interessante. Muito Interessante.

Passou-se um bom momento no qual só se ouvia o leve ranger de seus sapatos, além do rumor distante do metrô e murmúrio de vozes e outros ruídos das salas vizinhas. Finalmente apoiou-se na parede com as mãos, fechou os olhos e disse lentamente, como se pesasse cada palavra:

– Serei absolutamente sincero. Temos poder para institucionalizar uma lei sobre pensamentos criminosos, desde que tenhamos apoio suficiente do Sétimo Departamento.

Até então julgava não existir em mim lugar senão para a obediência, mas é possível que tivesse sido contagiado pelos sonhos de grandeza de Karrek, por planos e perspectivas dos quais nem estava consciente. Sustive a respiração quando ele continuou

– Enviarei um de vocês, de preferência o que fala melhor e mais convincentemente, até o Sétimo Departamento. Por certas razões, não posso ir pessoalmente... Como é, cidadão-soldado Leo Kall, você saberia apresentar bem o assunto? Ou melhor, pergunto ao seu chefe. Ele tem condições para isso?

Após um segundo de dúvida, Rissen respondeu quase involuntariamente:

– Tem, e no mais alto grau.

Pela primeira vez observei em Rissen um manifesto impulso de antipatia.

– Quero falar com você em particular, cidadão-soldado Leo Kall.

Fomos até minha cabine. Visivelmente irritado, Karrek cobriu o ouvido da polícia com uma almofada, e ao ver-me um tanto surpreso, riu:

– Eu sou, em todo caso, o chefe da polícia, e se isto, por azar, for descoberto, fico sabendo a posição de Tuareg...

Eu não podia deixar de admirá-lo por sua audácia, mas ficava intranquilo ao vê-lo orientar-se por caminhos individuais e não pelos coletivos.

– Então vejamos – disse ele. – Você deve encontrar uma forma de abordar o assunto com Lavris, no Sétimo Departamento. Eu sugeriria que você apanhasse aquela reprimenda e a associasse de alguma forma à sua descoberta. E depois, acidentalmente – não esqueça, acidentalmente, pois a legislação em si não é função do Sétimo Departamento – fale no significado que sua descoberta teria com as novas leis, introduzindo a mim e a você no caso... Devo lembrar-lhe que Lavris tem influência sobre o Ministro Tatjo, da Justiça...

– Mas não seria mais prático dirigir-se diretamente ao Ministro Tartjo?

– Totalmente ao contrário. Mesmo se você tivesse uma função definida, uma função sólida e importante em relação a este projeto de lei, transcorreriam semanas e semanas até que você chegasse a ele, e não podemos dispensá-lo por tanto tempo da Cidade Química n° 4. Se você apenas porta o projeto de lei, é bastante improvável que seja um dia recebido; quem é você, perguntariam, para sugerir leis? O particular obedece às leis, não as elabora. Mas se Lavris tem o assunto nas mãos... Mas é necessário despertar-lhe o interesse. Você acha que o conseguiria?

– O pior que me pode acontecer é fracassar. Não estou me expondo a perigo nenhum.

No fundo eu sabia que seria bem sucedido; empregaria toda a minha habilidade nesta incumbência. Certamente Karrek notou isso em mim, quando me testou com seu olhar insinuante.

– Vá então. A licença estará aqui amanhã, como também as recomendações. Agora você pode voltar a seu trabalho.