¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

quinta-feira, julho 29, 2010
 
KALOCAINA - XVI

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo




Eu tinha quase certeza de que ele cometera uma besteira. Só alguns dias mais tarde fui saber que legalmente eu jamais teria tido acesso ao Palácio dos Estúdios Cinematográficos. Era evidente ser necessária toda uma preparação, talvez uma educação totalmente diversa, para evitar o choque que eu recebi. Consequentemente, era também evidente que as autoridades competentes teriam resolutamente me negado a entrada. A impressão foi certamente um pouco destorcida em função de meu estado febril; mas tais distorções costumam passar rapidamente, e a comoção que experimentei à noite no Palácio dos Estúdios Cinematográficos deixou-me marcas por várias semanas.

Minha decidida permanência no mundo dos princípios teve fugaz existência. A frieza impecável de Lavris abalara minha confiança, talvez mais que tudo a fé em mim mesmo. Quem era eu para propor planos para salvar o Estado? Um homem doente e cansado, por demais doente e cansado para buscar refúgio em princípios éticos de impecável funcionamento, de surda e sonora voz. Lavris teria tido uma voz profunda, maternal, como aquela mulher da seita de loucos, teria consolado como Linda, teria sido uma mulher simples, comum... Neste ponto fui arrancado de minha semi-sonolência cansada e pulei do metrô. A apresentação do funcionário com o carimbo do Terceiro Departamento servira como licença, e sem saber exatamente como, lá estava eu diante da porta subterrânea que conduzia ao Palácio dos Estúdios Cinematográficos. Na capital, todos os edifícios de grande importância tinham portas subterrâneas e acabou acontecendo que em toda minha viagem jamais tive a sorte de subir ao ar livre.

Quando insisti em meu capricho e solicitei que me fosse permitido participar dos preparativos, pensei que assistiria à realização de um filme. Seria muito interessante, e para meu estado, repousante, sentar mais ou menos comodamente para assistir à criação do filme. Mas eu me enganara. A sala onde fui introduzido era uma sala comum de conferências, sem refletores nem bastidores. Uma centena de espectadores lotava as cadeiras, nada mais. Interrogaram-me minuciosamente sobre quem eu era, examinaram todos os meus papéis e por fim me colocaram numa das últimas filas.

Fez-se o discurso de saudação. Deduzi que a reunião trataria de examinar em linhas gerais uma série de roteiros, apanhar as linhas gerais mais importantes para um trabalho satisfatório e fazer uma primeira triagem. Uma série de instituições se fazia representar, entre outros diversos departamentos do Ministério de Propaganda, comissões diretivas das instituições artísticas e o Ministério da Saúde. O Serviço Voluntário de Cobaias não estava representado, o que ninguém entendia melhor do que eu. Inicialmente foi saudado com boas-vindas o conferencista da noite, um psicólogo especializado na matéria, ao que tudo indicava. Eu o engoli com os olhos quando subiu à tribuna. Nós mal conhecíamos psicólogos na Cidade Química, exceto alguns poucos conselheiros dos acampamentos infantis e juvenis e os psicotécnicos que realizavam as provas necessárias quando os jovens eram sorteados para as diferentes profissões. Djin Kakumita era pequeno e delgado, cabelos esbranquiçados e movimentos vivos e bem estudados de mãos. Quando tento reproduzir o preâmbulo de seu discurso, palavra por palavra, sei muito bem ser impossível fazê-lo, pois longos trechos ficaram perdidos na memória. No entanto, creio que o quadro é bastante claro para que possa dar uma idéia do conteúdo principal.

– Cidadãos-soldados – começou. – Frente a mim tenho um grosso volume, que tem sua origem em não menos de 372 roteiristas. É impensável discutir-se um a um dos 372 manuscritos, alguns escritores deverão perdoar-nos. (Risos entre os assistentes: naturalmente nenhum desses subescritores, que por assim dizer produziam matéria-prima, eram convidados para o trabalho qualificado posterior). Em vez disso farei rapidamente uma crítica em linhas gerais, que será ao mesmo tempo o fio condutor do trabalho.

– Antes de mais nada, permiti-me dividir estas histórias em dois grandes grupos principais: as com final feliz e as com final infeliz. Como o objetivo é atrair e incitar, poderia se crer que as de final feliz seriam as mais adequadas. Não é este, no entanto, o caso, como provarei agora. Para quem o final feliz é atrativo? Para os apáticos, que no fundo, em suma, temem os sofrimentos e a morte, e não é a estes que nos dirigimos. Investigações psicológicas têm-nos levado a concluir que as cobaias recrutadas entre estes são em pequeno e cada vez menor número. Quando tais pessoas chegam à feliz conclusão, esquecem alegremente o próprio conteúdo do filme. Voltam para casa e dormem tranquilas, convencidas de que o herói e a heroína se saíram bem. Não se dirigem ao serviço de propaganda para se inscreverem. Sacrifícios com final feliz servem para os intervalos entre as campanhas, não para os períodos de campanha. Servem para acalmar e tranquilizar familiares e demais cidadãos-soldados quando estes se perguntam por filhos, irmãos, colegas que desapareceram no Serviço Voluntário. Tais filmes devem ser produzidos esporadicamente e sua influência deverá ser positiva; não devem apenas ter um final feliz, senão também um sólido enredo recheado de humor sadio, cenas cômicas, preferentemente com situações comoventes, mas não heróicas. Uma série de manuscritos apresenta uma feliz mistura de uma mentalidade desejável durante os intervalos e da que deve ser divulgada nos períodos de campanha mesmo.

– Os filmes que mais pessoas atraíram foram os com o assim chamado final infeliz. Digo o assim chamado, pois é sempre arbitrária a conceituação do que seja a mais alta felicidade para o indivíduo, arbitrária e eventualmente fria, pois a rigor nada deve ser considerado a partir do ponto de vista individual. Em todo caso, estou me referindo aos filmes em que o herói sucumbe. Em quaisquer circunstâncias podemos contar com uma certa porcentagem de cidadãos-soldados para os quais isto é, no fundo, a maior felicidade, principalmente se ocorre em holocausto ao Estado. É principalmente desta porcentagem que são recrutadas as cobaias voluntárias, e tenho razões para crer, razões que voltarei a comentar mais tarde, que esta porcentagem é bastante grande e nossos dias. Trata-se, pois, de despertar e excitar as tendências já existentes em cada um, e orientá-las no rumo certo.

– Em regra os heróis expostos ao ridículo são bastante difíceis de contentar quanto à escolha de suas ruínas. Deve-se apresentar um que fascine. Antes de mais nada deve-se evitar rigorosamente todas essas doenças e formas de morte que têm em si algo de ridículo. Estados nos quais a cobaia torna-se um trapo, sem condições de manter a dignidade, nem poder dominar-se, sem condições de auxiliar-se a si mesmo nas necessidades biológicas mais elementares; não condenáveis em filmes deste tipo. Para filmes de períodos intermediários – perfeitos! E neste caso, com final feliz e reforço no lado cômico. Mas os sofrimentos que atraem heróis devem ser

a) dignos de serem vistos, e

b) adequados.

– A aspiração de sentir-se como instrumento exclusivo de um objetivo mais alto é um instinto com que se pode contar ilimitadamente nos tipos de herói com que até agora mantive contato. Ninguém pode seriamente acreditar que sua vida tenha um valor em si mesma. Se falamos do valor de uma vida, este valor evidentemente será algo que está fora do indivíduo. Qual dia, qual momento de nossa vida, ousamos interpretar como estas noções sobre a insignificância da vida individual em si mesma tem sua correspondência em uma cada vez mais profunda consciência das insondáveis exigências do Mais Alto Objetivo, isto é, do alvorecer da consciência do Estado nos cérebros dos cidadãos-soldados. Este sofrimento que o filme apresenta deve conter um benefício supra-individual demonstrável como objetivo – não deve ser uma pessoa que se salva com a morte do herói, pois então ele podia perfeitamente ter salvo a si mesmo! – nem mesmo uma pequena quantidade, senão milhares, milhões, de preferência todos os cidadaõs-soldados do Estado Mundial.

Um subcapítulo desta adequação é:

c) o glorioso da morte que se apresenta. Com isto não quero afirmar que o herói deva colher a glória de seus atos; isto baixa o nível dos filmes e pouco influencia as naturezas verdadeiramente heróicas. Pelo contrário, ele deve ser salvo de uma profunda desonra íntima. Contra o herói contrapomos notadamente o vilão, associal e com motivações egoístas, o homem que não resiste às tentações e se esquiva da dor e da morte. Mortalmente feio ou antipaticamente descuidado na aparência, flácido e indisciplinado, ele deve percorrer o enredo todo como um paralelo de advertência, no entanto jamais tão exageradamente apresentado a ponto de picar como uma agulha as consciências mais sensíveis: você, espectador, não será assim, por acaso? O temor de ser covarde, desonrado, interiormente feio, é geralmente uma intensa força de atração nos tipos heróicos que descrevi, os quais devemos ter em vista antes de tudo em nossa campanha.

– Muito poucos são os manuscritos em meu poder que preenchem todas as rígidas exigências que acabei de apresentar. A continuação de nosso trabalho será bastante instrutiva: o material será dividido entre vários estúdios, triado e criticado segundo as linhas de orientação de que falei, e o que puder ser utilizado será remodelado, melhorado, polido, até que reste um número relativamente pequeno de proposições, mas totalmente satisfatório. Este trabalho deverá estar pronto em quatorze dias, quando nos reuniremos novamente para examinar juntos o resultado. Devo agora agradecer a palavra, esperando uma viva discussão.

Desceu da tribuna. Eu me sentia terrivelmente mal, embora não soubesse dizer exatamente por quê. Estava seguro de que todos viam o psicólogo como alguém que inspirava confiança ao falar dos cidadãos-soldados como um técnico meticuloso fala de mecanismos sofisticados, que todos eram transportados por sua superioridade e de que ele, pessoalmente, julgava-se acima da máquina, manipulando os controles. Mas, dependesse ou não da febre, eu conservava sempre viva a imagem de minha primeira cobaia, n° 135, e de seu único grande momento, que eu invejava. Podia desprezar n° 135 tanto quanto quisesse, podia maltratá-lo em pensamentos ou na realidade, mas enquanto o invejasse, não podia jamais concebê-lo como o engenheiro a sua máquina.